Junho de 2013.
― Sério,
cara, você tem que me contar como é que foi isso ― foi assim que começou o meu
relato pro Daniel sobre um dos casos mais esquisitos em que eu já me meti nessa
vida de caçador. ― Você realmente teve que fazer o que disse que fez?
Só para se
ambientarem, esse é mais um dos meus registros sobre casos para a Ordem, a
organização em que nós não deveríamos existir, mas por algum motivo, os
registros precisam ser feitos ― meu padrinho ainda vai ter que esclarecer muita
coisa um dia, mas por enquanto vamos deixar passar.
Eu estava
sentado na janela do meu quarto, estava tirando um dia de folga. Era
necessário, não estava com ânimo para uma ronda. Minha última aventura tinha
sido complicada, descobrir que a garota com quem estava saindo era uma caçadora
de outra organização e que estava em missão na minha cidade... Bem, foi
divertido, mas cansativo. Foi uma pena ela ter ido embora, ela bem que poderia
ter ficado mais alguns dias.
Entre um
cigarro e outro, meu celular tocou e eu o atendi. Daniel, o amigo que eu havia
feito em São Paulo. Passamos uns maus bocados naquela demanda, mas,
pessoalmente, acho que fizemos um bom trabalho. Bem, de volta ao relato, antes
de eu sair da cidade dele, nós paramos para observar o céu e trocar algumas
palavras. Ele é um bom garoto, está ferrado, mas está indo no caminho certo
para estar mais ferrado ainda. Essa vida pode ser divertida, mas é bem ferrada.
― Daniel.
Como vai? ― atendi.
― Estou confuso com uma coisa ― ele
respondeu ― Você falou mesmo sério sobre
aquilo?
― Aquilo...
Ah, no Novo México? Sim.
― Como foi isso?
― Foi
bacana.
Silêncio.
― Jack.
― Dan...
― Dá pra contar sobre isso ou tá difícil?
― Ah, foi
mal. ― rimos ― Só me dá um segundo.
Apanhei
outro cigarro e o acendi, traguei e, enfim, comecei a relatar como foi o caso
do monstro no Novo México:
― Foi há uns dois anos, meu padrinho me mandou
pra lá com um sorriso safado no rosto. Ele disse que seria engraçado para um
engraçadinho ― comentei ― Não entendi na hora o que ele quis dizer, mas fazer o
que. Um trabalho é um trabalho é um trabalho.
“As
vantagens de se morar numa cidade que não fica no lugar é a facilidade de
chegar a qualquer lugar. Foi simples pegar a Alma do Deserto e ir à direção
certa, dois dias de viagem em cima de uma motocicleta e eu acabei chegando ao
Novo México. Eu nem lembro a cidade, mas estava complicado andar de moto no
meio de tanta areia. Precisei parar num pequeno posto e esperar aquela nuvem de
poeira constante passar”.
― Seu olfato devia estar ficando complicado,
não é? ― Daniel perguntou ― Considerando
as características lupinas que você tem.
― É, é, faz
piada mesmo com o projeto de laboratório aqui ― reclamei ― Dá pra me deixar continuar,
parceiro? Valeu.
― Beleza, o que houve no posto? Você não ia
falar disso se algo não tivesse acontecido lá.
― Bem, foi
ali que eu encontrei as pistas que eu precisava. Foi um caso muito simples,
nada como quando tivemos que agir juntos ou qualquer coisa do tipo, só uma caça
ao monstro. Quase tão simples quanto um desenho animado...
― Não, cara, isso FOI um desenho animado.
― Só
faltaram as linhas de contorno. H-eh.
“Bem, no
posto tinha carne seca, cerveja e um mural com alguns cartazes de desaparecidos.
O padrão entre eles? Todos homens de bigode por volta dos trinta anos. Não era
difícil reparar no racismo da criatura, mas tudo bem, meu trabalho não era
julgar, era matar”.
― Esse sempre é seu trabalho.
― Nem
sempre, às vezes eu vou a missões de resgate ou de troca. Tudo depende do que a
Ordem me manda fazer. ― respondi ― Okay, peguei um pouco de carne seca e uma
cerveja e sentei próximo ao balcão, observando a televisão junto com o cara do
caixa. Notícias óbvias, a tempestade de areia iria passar em poucas horas,
notícias sobre o governo, crimes mundanos e os desaparecimentos. Foi simples
somar um mais um. Aquela não era uma tempestade normal, não sei muito delas,
mas não acho que elas não costumam acontecer com tanta força no Novo México. Não
tem espaço lá pra isso.
“Anomalia.
O monstro era a causa daquela tempestade de areia, talvez algo no Véu estivesse
causando a tempestade para que não notassem a criatura... Seria ridículo demais
ouvir as notícias sobre aquilo, fala sério”.
― Se você diz que a tempestade era causa do
monstro estar perto então você estava na pista certa, não é?
― Pista
certa? Ele estava indo de encontro a mim, cara.
― O que aconteceu?
― O óbvio.
Um pacote gigante de doritos de poncho passou perto da Alma do Deserto e estava
tentando engoli-la.
― Você tem uma definição estranha de óbvio.
― Daniel comentou, rindo.
― Tanto
faz. ― retorqui ― O fato é que ninguém mexe com a minha motocicleta. Com meu
charme lupino, mandei o caixa se esconder, a coisa ia ficar feia. Tirei minha
faca da cintura e fui até a coisa. Sabe como é, rosnando e pronto pra matar.
“Por mais
que ele fosse uma anomalia, ele era bem... Dócil. Mesmo que estivesse tentando
comer minha motocicleta, ele parecia bem inocente. Só estava com fome. Não foi
grande coisa, eu só precisei pegar a faca e cortar ele de uma ponta a outra. Um
único corte e todos os homens desaparecidos rolaram para fora. Estavam bem,
cobertos de queijo, mas bem.”
― E o que houve com ele, então?
― Ah, eu
peguei um pouco daquele queijo e comprei um salgadinho de tamanho normal.
Arrastei o pacote gigante até a lixeira mais próxima e joguei lá. Foi bem
óbvio.
― Você se mete em cada confusão, cara.
― É um dom
― rimos ― Bem, se não se importa, Dan, eu vou fumar mais um cigarro e ir me
deitar. Tenho uma série de exercícios pra fazer amanhã cedo.
― Até mais ― e desligou.
Silêncio.
Fumaça escapa de minha boca.
“Deveria
ter contado sobre quem foi que fez aquele feitiço pra ele? Ou fiz certo em
manter o segredo da guria?”