26 de maio de 2014

Livro ― Diário Digital

O livro Diário Digital ― escrito por este que vos fala ― acabou de ser publicado e já está disponível para vendas no website Clube dos Autores. E aqui, será publicada a sinopse do livro com sua capa.

O Diário Digital. O livro secreto de Luigi Lunewalker durante seu trabalho na empresa “Digital Animes News”, um lugar onde o café reinava e as notícias se espalhavam, entretanto com alguma dificuldade. Afinal, com aquela equipe as coisas eram uma verdadeira confusão. Violões sendo arremessados, tênis jogados em estagiários, estagiários fugindo, redatores se escondendo, editor-chefe se trancando em seu escritório para fugir... Era o tipo de coisa que se via em um dia normal naquele lugar.

E é exatamente isso que o Diário quer mostrar: O que acontecia por trás do website? Como era o dia a dia daquela equipe que tinha a maior cara de família? Lendo-o é possível descobrir, mas é recomendável certo cuidado e uma boa dose de café para isso.

Características
Número de páginas: 123
Edição: 1 (2014)
Formato: Pocket 105x148
Coloração: Preto e branco
Acabamento: Brochura s/ orelha
Tipo de papel: Offset 75g

Preço: R$27,88

Link: https://www.clubedeautores.com.br/book/163627--Diario_Digital#.U4LVSfldX72

E para aqueles que forem capazes de compra-lo e puderem me encontrar, garanto que eu vá assina-los. Isto é, se tiver uma caneta ao alcance.

20 de maio de 2014

Conto do Luneverso ― Fada Perdida

I

Outubro de 2013

As chuvas jamais foram um problema em São Miguel. Vinham sempre na mesma época, auxiliando a plantação de café local. Naquela noite meu único problema com a chuva foi o fato de não conseguir manter um cigarro aceso fora de casa.
Não era problema fumar em casa, meu padrinho sempre fumava, mas eu gostava de fumar fora. De sair e observar o céu noturno. Com tantas nuvens ali não era possível qualquer observação. Coloquei uma jaqueta e fui até minha motocicleta, a Alma do Deserto.
Liguei a garota e saí sem um destino certo. Estranhamente eu não tinha vontade de ir ao bar, a chuva provavelmente havia espantado a clientela e não haveria qualquer diversão por lá.
Passei em frente à igreja, no centro da cidade, parei um pouco. Fiquei observando a estátua do arcanjo Miguel e pensava no que haveria para se fazer naquela noite. Harley estava trabalhando e, por mais que eu fosse fã de jogar cartas, eu não queria ir até a casa de jogos onde ela trabalhava ― até por que nós não estávamos muito bem, mais uma briga em nossa relação.
Enquanto estava ali, meu celular tocou. Gustavo Martins.
O que um membro d’O Bando da Lua estava querendo fora da época da reunião mensal? Não sei, mas eu atendi do mesmo jeito.
― Moony.
― Hey Jack, o que está fazendo agora? ― ele perguntou.
― Estou ótimo também, Moony, qual o lance?
― Dê uma passada aqui. Acho que temos um caso.
― Apanhe a cerveja, Moony ― sorri, desligando o celular e ligando a motocicleta outra vez.
Antes de sair, olhei mais uma vez a estátua ali parada. A chuva escorria por toda ela, parecia até mesmo que Miguel chorava por algum motivo, mas isso foi apenas uma divagação pessoal. O que a falta de álcool não faz, não é?

II
O apartamento do Moony era o reflexo dele mesmo como pessoa. A organização era impecável, muito ao contrário do meu quarto, que era a representação física do que era o Caos.
Os móveis eram bem cuidados, os livros estavam catalogados por ordem alfabética, até mesmo as almofadas do sofá estavam completamente alinhadas. Gustavo tinha até mesmo improvisado um cinzeiro, disposto na mesa de centro, feito com o fundo de uma garrafa de refrigerante.
Ele me fez tirar os tênis antes de entrar, o cara era mentalmente perturbado com a ordem em sua casa. Ele me estendeu uma lata de cerveja no momento em que abriu a porta, o que me fez sorrir.
― Moony ― cumprimentei
― Jack ― ele estendeu a mão, apertei-a.
Sentei em um dos sofás, o mais próximo possível do cinzeiro, tirei um cigarro do bolso e o acendi. Ele ligou um ventilador, virado para o lado de fora da janela ― era um lugar muito, muito, limpo. Magos e suas manias.
― Então, ― comecei, após o primeiro trago ― qual a urgência desse caso? Não é nem uma reunião formal do grupo.
― Eu sei, desculpe se atrapalhei qualquer plano seu ― ele disse ― Sei que está namorando agora e...
― Ah, Moony, corta essa. Você sabe muito bem que a Harley e eu estamos brigados. ― respondi, soprando a fumaça em sua direção, que ele tentou espantar abanando a mão em frente ao rosto ― Diz aí.
― O Arcano.
Olhei para ele, batendo as cinzas no cinzeiro, tirei meus óculos escuros. Aquela organização. O motivo de todos nós existirmos como conjunto.
― O que houve dessa vez?
― Há uma família, o professor os conhece, uma mãe e uma filha. ― ele disse ― São do povo feérico.
― Não sabia que o Arcano se interessava por fadas. Não parece coisa deles.
― Você sabe que almas são poderosas, mas almas de anomalias tendem a ser mais poderosas do que as humanas. Há muito mais energia do que as nossas.
― Certo, entendi. Fadas são feitas de pura magia, a alma delas é ligada unicamente com o mana. ― comentei. ― Então? Mataram elas e pegaram suas almas?
― Não.
― Não?
― Não. ― repetiu ―  A garota, a filha, não é uma fada. Mestiça. O pai dela era um caçador, amigo do professor, da época antes da Ordem.
Meu padrinho nunca falava de seu tempo antes da Ordem, a organização que ele fundou, mas todos sabiam que ele havia sido membro de uma outra organização de mesmo padrão. Estávamos enrascados, eu sabia disso.
― Então, a garota é especial. Mestiços são difíceis de encontrar ― comentei.
― É, casos muito raros. Ainda mais entre fadas e humanos. ― ele disse ― Não são como você, não são um povo feito para lutas, mas são um povo de poder único. Existem pela natureza.
― Certo, vamos me deixar de lado por um instante. O que fizeram com a garota?
― Sequestro, oras. ― ele respondeu ― Estão mantendo ela em cativeiro, pelo que eu soube, estão tentando extrair dela o potencial para gerar mais como ela.
― O que seria um problema. Poder demais nas mãos erradas.
― É, você entendeu.
― Então, como se sente com o que vamos fazer?
― Perdão?
― Oras, Moony, é uma caça às bruxas. Você é um bruxo também. ― sorri para ele, apagando o cigarro ― Não é meio irônico?
― Eu sou um mago psíquico, Jack, não sou um demonólogo como elas.
― Você sabe que isso é apenas uma teoria, não sabe?
― Eu sei, mas é o mais aceito entre os membros da Ordem. Ao menos os que estão estudando sobre a Arte.
― Vocês magos vivem querendo nos deixar mal.
― Não é verdade, caçadores são importantes também!
― Só estou pegando no seu pé, Moony. ― levantei ― Quando partimos?
― Imediatamente.
― Você sabe onde estão? Como? O Oráculo outra vez?
― Kobra.
― Ah, aquele cara... Sabe que não confio muito nele, não é? Não parece ser do tipo que joga no time dos mocinhos.
― Ele é útil. ― ele respondeu ― E se quer saber, nem o Oráculo é um contato muito confiável.
― Eu sei, toda vez que você fala com aquele mendigo você fica fraco e precisa de uns dois dias pra recarregar as baterias ― comentei ― Ainda me surpreendo em lembrar que você falou com ele poucas horas antes de enfrentarmos aquele dragão.
― Vai ver meu corpo não é tão fraco quanto aparente ser para você, Caçador.
― Você quem diz, Mago Psíquico.
― Só mais uma coisa...
― Atire.
― Não acha que o Frank vai ficar sentido com nossa atuação sem ele?
― Você deposita pouca fé no Frankie, sabia? Ele nem está na cidade, saiu para resolver alguma coisa da ordem dele.
― Espero que ele não esteja com problemas.
― Você se preocupa demais.
― Sou um bom amigo.
― Eu também sou, por isso sei que ele está bem. ― retruquei ― provavelmente está agora mesmo enfiado na cama com alguma garçonete que encontrou onde quer que ele esteja.
Gustavo me olhou, sério. Recoloquei meus óculos. O silêncio foi quebrado com nossas risadas. Era quase certo o que Frank estaria fazendo naquele momento, isso se ele já tivesse terminado o que havia ido fazer.

III
A chuva diminuiu bastante no pouco tempo que estive no apartamento do Moony, me pergunto se ele teria alguma influência nisso, mas como um mago da mente poderia influenciar a natureza? Até onde sei, ele tinha poder apenas, bem, sobre a mente! Mas bem, cavalo dado não se olha os dentes...
Moony estava no carro dele e eu o seguia de perto em minha motocicleta. O que há de novo desde nossa última atuação juntos? Bem, Moony aprendeu um truque ou dois com os membros da Ordem que estudavam a mente. Um elo mental, melhor do que walkie-talkies ou celulares.
“Então, como vai o novo livro?”, perguntei.
“Ahn? Ah, eu esqueci por um momento que havia feito esse elo quando saímos de casa... O livro está andando bem. Estou tendo alguns problemas com alguns personagens, mas está tudo indo bem”.
“H-eh, avise se precisar de um pouco da minha poesia”.
“Meu livro não tem espaço para nada que lembre Bukowski, Jack! Eu tenho minhas próprias influências!”
“Só sugeri, relaxa”.
Ele fez uma curva brusca. Eu tive que forçar o guidão por instinto para continuar seguindo ele.
“Aliás, esse negócio de elo mental... Não é arriscado?”
“Não há como interceptar e...”
“Não, não por isso. Eu quis dizer, comigo. Você sabe, minha mente é um caos”.
“Eu pensei muito sobre isso desde que aprendi a fazer o elo, mas ainda não tive qualquer conclusão sobre os efeitos de um elo mental em uma mente fracionada como a sua”.
“Ou seja...?”
“Eu precisava de um teste prático para saber”.
“Claro, claro... Às vezes você me lembra muito os Bakers, eles quem gostam de correr riscos”.
“Para evoluir é preciso tomar certos riscos”.
“Você quem sabe, não vou ser eu quem vai ter problemas mesmo... Dessa vez”.
Outra curva.
IV
Já fazia alguns dias que eu não ia até a parte baixa da cidade. Não sei o que diabos o Moony queria enfiando o carro dele ali, mas o risco era dele. Se bem que nenhum civil conseguiria levar o carro daquele mago e seria muito difícil alguma anomalia querer andar de carro.
Parei a Alma do Deserto próxima ao carro dele. Certifiquei-me que minha pistola estava na minha cintura, junta com a faca de prata que eu carregava sempre comigo.
― Aqui? O Arcano anda passando por problemas no orçamento? ― perguntei ao ver que ele encarava um prédio abandonado ― Parece o galpão onde eu tive o primeiro contato com a Harley.
― Estou sentindo uma pontada de saudades vinda de você, Lunewalker? ― maldito, alfinetadas assim são golpe baixo.
― Talvez, Moony, talvez ― fechei a cara, procurando por um cigarro na jaqueta. ― Sinceramente, não sei se vamos durar por muito mais tempo.
― Okay, Jack, vamos tricotar sobre isso depois de resolver esse caso, será que consegue não pensar em você por algumas horas?
― É hora da caça, Mago.
Gustavo se adiantou ao prédio abandonado, próximo a porta de entrada. Uma porta de metal enferrujado, corroído pelo tempo, parecia que já faziam anos que ninguém mexia ali. Ele deu duas batidas na porta.
“O que esse maluco está fazendo?” perguntei-me
“O elo ainda está funcionando, Lunewalker”.
“É, eu sei, era pra você ouvir”. Não era. “Então, o que está esperando? Quer que eu derrube isso aí?”
“Já vai ver”.
Silêncio.
Silêncio.
Barulho de metal se movendo. A porta se abriu, revelando uma boate apinhada. Magia, sempre agindo de maneira engraçada ― nesse caso, ocultava uma boate de anomalias.
Luzes fortes e coloridas rodavam pela sala, Daft Punk tocava à um volume absurdo, quase não havia espaço para se andar da porta até o balcão de bebidas, a única explicação possível era que ali era mesmo uma boate feita para anomalias.
“Não se perca, Jack”.
“Eu estou tentando, mas... Luzes, cheiros, sons... Tudo muito forte aqui, está zoando meus sentidos”.
“Por isso é o lugar perfeito contra você. Concentre-se na mente e deixe o exterior de lado”.
“Falar é fácil, desgraçado, experimenta estar no meu lugar uma vez na vida, você não duraria dez segundos”.
Era realmente complicado estar em um lugar daqueles quando se funciona basicamente usando seus sentidos, foi preciso muita concentração para que eu não tivesse um derrame ― principalmente quando trocaram o som por uma batida repetitiva de algum tipo de funk. Realmente era uma boate.
“Moony, me diz... Por que estamos mesmo aqui? Não parece o lugar onde o Arcano estaria trabalhando”.
“Acredite, é exatamente esse o lugar”.
“Merda... Eu vou parar um pouco, cara. Preciso de uma bebida antes de continuar qualquer coisa”.
“Está mesmo com problemas com isso, não é?”
“Não, imagina...”
Apoiei-me no balcão, minha cabeça girava e eu sequer tinha consumido qualquer coisa. Não dá pra entender como as pessoas vão em lugares como esses. Shows são uma coisa, mas boates? Boates são o pior do pior.
Pedi um bloodymary por algum motivo. Eu não costumo beber essas coisas, meu cardápio está sempre em cerveja, uísque, conhaque e rum. Meu drink veio logo, tomei-o de gole e olhei pro Moony que ria de alguma coisa discretamente. Uma garota se jogou em mim, envolvendo seus braços em meu pescoço, tentando me beijar.
Se eu estivesse solteiro, teria sido fácil demais, mas por mais que eu estivesse brigado com minha namorada, eu ainda estava em um relacionamento sério e monogâmico. Dureza essa vida ― como o Daniel conseguia viver com a Lavínia? Vai ver eu nunca saberia direito o que é isso, mas de qualquer modo, tirei a garota dos meu pescoço.
― Me beija ― ela disse.
― Nah, beija ele ― e joguei ela para cima de outro cara.
Saí dali, enquanto ela se agarrava com o cara que me agradecia em um sinal mudo de positivo com o polegar. Já estava na hora do Moony me dar algumas explicações.
“Sério, Moony, você deve me odiar, não é? Pra me trazer num lugar desses...”
“Relaxe, homem. Nós estamos quase lá”.
Eu o segui até os fundos da boate, próximo ao palco havia uma porta que dava para os bastidores, mas não era apenas para lá que ela levava. Havia uma escadaria, descendo e descendo através da escuridão.
“Por algum motivo está tocando Dire Straits na minha cabeça, isso faz sentido?”
“Dire Straits? Até que faz, você é fã, não é?”
“Meu padrinho é, eu não sou um fã de verdade”.
“Bem, estamos aqui”.
“E onde é, exatamente, ‘aqui’?”
Gustavo indicou a porta ao fim da escadaria. Me olhou de maneira séria, era ali que as coisas se complicariam. Saquei minha pistola e conferi como estavam as balas, eu estava pronto.
Ele recitou algum de seus encantamentos antes de se afastar, dando-me espaço para acertar a porta com um chute. A porta se quebrou, revelando mais escuridão.
“Não consigo ver aqui” ele disse “Vamos nos manter unidos pelo elo, não é preciso falar”.
“Eu ‘tô ligado” respondi “E bem, se houvesse algo aqui, já teria atacado. Ou eu teria sentido o cheiro. Parece tão vazio quanto às ruas lá fora”.
“Estranho”.
“Espera, Moon”.
Um cheiro fraco estava ali. Parecia quase inconsciente. Apanhei meu isqueiro no bolso interno da jaqueta e o acendi. Gustavo avançou rapidamente quando vimos o que era. Ou melhor, quem era. Uma garota. Provavelmente a garota, afinal, ele estava tentando ajudá-la a levantar.
Guardei a pistola de volta na cintura e o ajudei com ela. Ela estava fraca, sangue escorria de sua boca e costas. Ela era pequena, tinha cabelos bem mais compridos do que os meus, mas tão escuros quanto. Ela estava com um vestido azulado, estava em frangalhos. Algo foi feito com ela, estava catatônica.
“Moony, desfaça o link.”
“Não é um link, é um elo”.
“Dá na mesma, só ajuda ela a recobrar os sentidos, cara. Vai ver é preciso de mais concentração e eu sei que isso te priva de muito do seu mana”.
― Okay, okay ― ele disse.
Gustavo tocou-a na testa, aos poucos ela recobrava a cor de suas bochechas, recobrava o brilho nos olhos. Ela estava acordando. Tomei-a nos braços e mandei ele ir na frente. Precisávamos sair dali sem sermos vistos, por sorte estávamos na parte de trás da boate. O que nos deu a desculpa de usar a porta dos fundos.
Estávamos saindo quando um dos seguranças nos chamou de volta. Pelo cheiro, era claramente um vampiro, mas não era da cidade. Não cheirava a Bakargy.
― O que houve aqui, camaradas? ― ele perguntou.
― Ela desmaiou, foi pisoteada. Estamos levando ela para casa ― Gustavo respondeu.
― Ahã. Escute, eu preciso saber o que aconteceu de verdade, ou eu vou ter problemas com minha chefe.
Não, você não precisa saber o que aconteceu. ― Gustavo disse, a mão se fechando do lado do corpo, ele estava recitando seu encanto na mente, eu tinha certeza.
― É, eu não preciso saber o que aconteceu. Vão logo antes que arrumem encrenca, ouviram?
Quando coloquei a garota deitada no banco de trás do carro do Moony virei para ele e disse:
― Então, desde quando você é Obi-wan? ― perguntei com um sorriso sarcástico.
― Ah, cala a boca ― ele respondeu ―, vamos, a garota precisa de ajuda.
― Okay, eu te sigo.
Quem me dera que as coisas fossem fáceis. Moony percebeu minha agitação antes mesmo de mim, eu estava com minha faca na mão e não me lembrava de tê-la apanhado.
O som de um salto alto batendo no chão e se aproximando era ouvido naquela rua, a iluminação vacilou. Parada a nossa frente estava uma mulher magra de vestido vermelho. O vestido era colado em seu corpo, mas ela não tinha exatamente curvas para demarcar com aquele vestido.
― Ei magricela, ― eu disse ― você não vai encostar um dedo na garota!
Ela riu. Gustavo parou ao meu lado, fechando a porta do carro. Ele estendeu sua mão em direção à mulher, que se contraiu quando a energia possuiu lhe a mente.
Ele estava dentro da cabeça dela. Estavam em um embate mental, como eu sabia que ele faria. Era o que eu precisava, mas tive que esperar pelo sinal. O sinal de que ele não estava completamente lá. Que era seguro atacar.
“Agora” ouvi sua voz em minha mente. Ele havia ficado bem mais forte desde o embate com o dragão.
Adiantei-me até a mulher, ela fez um movimento errado no tabuleiro quando decidiu ir até nós sozinha. Erro que ela não tornaria a repetir, por que não teria outra chance.
A faca de prata atravessou-a no peito, atingindo seu coração. Torci a faca sem tira-la de dentro dela, só para ter certeza de que ela iria morrer ali.
Gustavo baixou a mão. O corpo dela caiu. E o dele também. Ele estava exausto, o quanto de poder ela conseguiu com o que havia feito à garota-fada? Às vezes é melhor não saber desse tipo de coisa.
Abri o porta-malas do carro dele e joguei o corpo morto dentro. Esperei que ele estivesse melhor para dirigir. Quando estava pronto, estava amanhecendo. Pelo menos conseguimos concluir o objetivo da noite. Resgatamos a garota e, de bônus, matamos uma bruxa do Arcano.

V
De volta ao apartamento, eu tinha feito café, a garota havia recobrado a consciência e estava no banho. Ela precisava limpar o sangue que havia em seus ferimentos, que aos poucos se curavam. Fadas, se curam tão rápido.
Estávamos na cozinha, sentados um de frente ao outro, em silêncio. O único som que era feito era o do chuveiro e dos biscoitos que eu mastigava, Moony estava refletindo sobre os acontecimentos da noite.
Eu estava para acender um cigarro quando ouvi ela dizer:
― Pode não fazer isso?
Ela estava usando um vestido que comprei em uma loja qualquer no caminho. Por sorte, coube direito nela.
― O quê? Fumar? ― perguntei
― É, eu não gosto de fumaça... Sou alérgica.
― Grande... ― guardei o cigarro de volta no maço ― Então, qual o seu nome, tampinha?
― Isadora Echeverria.
― Eu sou Jack Lunewalker e aquele é o Gustavo Martins. ― indiquei o amigo a minha frente ― Nós tiramos você das garras do Arcano.
― Obrigada... Eu não sei como agradecer.
― Que tal contar o que aconteceu? Já seria de grande ajuda ― sugeri ―, o cara ali é um grande curioso.
― Bem, eu não sei de tudo. ― ela respondeu, como quem se desculpa ― mas o que eu sei é que... Eu não tenho mais as minhas asas, nem mesmo minha ligação com a Mãe.
― Fala da sua alma-feérica? ― perguntei. ― Se for, eu tenho uma coisa pra você.
Tirei do bolso da jaqueta um pequeno frasco com um conteúdo enevoado e brilhante, pulsando em cem cores diferentes por vez.
― A escolha é sua ― comentei ― Pode ser uma garota normal e sem graça, ou uma mestiça com alguns poderes que podem ser bons e também dar algumas dores de cabeça.
Joguei o frasco para ela. Ela o abriu sem demora. O conteúdo flutuou no ar e ela o apanhou outra vez. Os ferimentos visíveis se fecharam sem deixar vestígios, mas os ferimentos de suas costas apenas cicatrizaram.
― É, imaginei que fosse possível. ― Gustavo se pronunciou ― Sinto muito, não conseguimos recuperar suas asas.
― Tudo bem. Eu fico feliz em estar viva.
― Essa é uma garota positiva! ― comentei, sorrindo.
Silêncio. Ela se sentou ao meu lado.
― Eu posso pedir mais uma coisa?
― Pode.
― É que... Meu pai era um caçador, ao menos é o que minha mãe diz, e... Eu queria aprender.
― Aprender a caçar? ― perguntei
― É. ― ela respondeu ― Quero fazer pelos outros o que fizeram por mim... Eu sou assim.
Sorri.
― Bem, o padrinho bem dizia que já estava na hora de eu encontrar alguém para ensinar o que eu sei.
VI
Deixamos a garota em casa, com meu número de celular. Ela me ligaria assim que estivesse preparada para a primeira aula de caça. Falei com sua mãe, ela ― além de bonita ― compreendeu o desejo da filha, nos agradeceu pelo que fizemos. Ganhamos um pedaço de bolo estranho, mas gostoso do mesmo jeito.
Gustavo continuava quieto o dia todo.
Sentei-me de volta no sofá, acendendo, finalmente, o cigarro que queria acender. Traguei-o lentamente, apreciando a nicotina preencher meu corpo e, com a fumaça fora de meus pulmões, perguntei:
― Qual o lance, cara?
― A bruxa.
― O que tem ela?
― Ela me mostrou o que não consegui ver quando o elo estava funcionando. ― ele respondeu ― Eu vi sua mente, como ela aparece para você.
― Ah, só isso?
― Não é assustador?
― Não sei, depois de alguns anos eu me acostumei.
― Como você consegue lidar com vozes tão diferentes o tempo todo falando com você?
― Eu bebo... Me ajuda a manter elas quietas, ou pelo menos me ajuda a não ouvir aquele lado da mente... O Monstro.
― Bem, você não é um monstro, amigo.
― Eu sei disso, Martins! ― retruquei ― Já passei muitos anos achando que era, mas eu sei que não sou um monstro. Eu escolhi não ser. E é isso que me basta.
― Se você diz.
Silêncio.
Batidas na porta. Ela abriu sem que Gustavo tivesse levantado, era Carlos Frank. Ele sorria, como sempre, e sentou-se conosco:
― Senhores! A diversão voltou a cidade! O que eu perdi nesse meio tempo?

E toda a nossa aventura foi relatada ao Mago Etéreo.

Conto do Luneverso ― Caça às bruxas

I

Maio de 2013

A noite estava clara, a Lua cheia iluminava a plantação, nós estávamos parados próximos à estrada, sentados em lugares diferentes no mesmo carro. Eu estava sentado no capô, o cigarro aceso, rindo da situação de momentos atrás. Lucas Baker estava dentro do carro, procurando alguma estação de rádio que prestasse. E Hector Acaiah voltava do porta-malas com o caixote de gelo com as cervejas que conseguimos, dando uma para cada.
Em contraste comigo, um tipíco punk dos anos oitenta, Lucas era menor e parecia um skatista de cabelo tão curto que chegava a parecer careca. E ainda mais em contraste, Hector era um cara grande, de cabelo escuro ondulado e mantinha um sorriso o tempo todo ― ele estava sempre calmo.
Após o brinde, tentamos entender o que havia acontecido naquela noite. As coisas estavam mesmo fora do comum, mesmo para nós. E tinhamos um Baker conosco!
― Sabe, para um anjo da guarda, você consegue nos enfiar em cada enrascada, Hector ― Lucas comentou.
― Vindo do curandeiro arriscado isso não significa um problema ― ele retrucou ― Achei que fosse você quem gostasse de riscos.
Touché.
Eu permaneci em silêncio, bebendo de minha cerveja e observando o céu. Meu cigarro queimava lentamente entre meus dedos.
― Jack, o que foi? ― Hector perguntou, agitando a mão em frente ao meu rosto ― Ainda está aí?
― Estou ― respondi ― Só acho que não deveríamos ter saído do bar, Hec.
Antes de termos parado o carro naquele lugar, estávamos no bar Princesa. Bebendo e nos metendo em problemas ― como era de costume ―, até o momento em que Hector se agarrou com uma garota ali e descobrimos, da pior forma, que ela não podia ser tocada por homens. Ela era uma cobaia de alguma experiência de bruxa ou brinquedinho de uma bruxa, eu não tinha certeza ainda.
O que sabemos é que Chapel nos pediu para sair do bar assim que Eve apareceu. A dona da moça com quem Hector estava envolvido no momento.
O Princesa pode ser um bar neutro, mas só é neutro até o momento em que alguém puxa briga com alguém dentro do estabelecimento.
― Acho errado alguém pertencer a outro alguém ― comentei ― Oras, nós somos os mocinhos não somos?!
― Olha, isso que o Lunewalker falou tem sentido, Hector ― Lucas disse ― Se nós não somos mais os caras bons, esqueceram de me avisar disso aí.
― Bem, vendo por esse lado, a razão está com vocês, meus amigos ― Hector ergueu sua cerveja ― É parte de minha demanda salvar aqueles que precisam de ajuda.
― Estamos agora em uma missão celestial? ― Lucas perguntou ― Um anjo da guarda, um caçador lupino e um curandeiro insano? É isso que o mundo envia para salvar algumas donzelas em perigo?
― Ah, cala a boca, Lucas ― retorqui ― É hora de caçar a bruxa malvada!
Brindamos.
― E como Jack deixou a Alma do Deserto em casa, hoje estamos por conta da Verônica aqui ― Hector deu leves tapinhas no teto de seu carro. ― Parece justo pra mim.

II
Carros nunca foram meu meio de locomoção favorito, mesmo que sejam úteis para levar mais gente e também mais armamento. Eles não me dão a sensação de liberdade que uma motocicleta trasmite.
Mas mesmo assim, estávamos, de madrugada, rodando pela cidade em busca de alguma pista da bruxa malvada. Hector estava calado, dirigindo. Lucas brincava com o rádio, ainda procurando alguma música que o agradasse. E eu estava deitado no banco de trás, o braço sobre os olhos.
Em um solavanco, eu me levantei.
― Foi mal ― Hector disse ― Achei que estava dormindo.
― À noite? ― perguntei.
― Bom ponto.
― Galera, diz aí... ― Lucas começou ― Como é que nos vamos encontrar a bruxa, mesmo? Digo, o olfato do Jack não é tão bom assim. Ele precisaria conhecer o cheiro dela e estar no rastro, teria que ser recente.
― Vamos dar um jeito, careca ― respondi.
― E parece que acabamos de encontrar esse jeito ― Hector disse, indicando o carro preto parado em frente à um beco. Não parecia um casal se agarrando, estava mais para uma briga de vampiros, tipíco. ― Estão prontos, senhores?
― Sempre ― Lucas tirou do bolso luvas de ciclismo e as colocou. ― Hora de brincar.
Enquanto Hector era um cara calmo, Lucas sempre foi do tipo que adorava uma boa briga, uma boa confusão, e se atirava no perigo o quanto fosse possível. Ele sempre acabava bem... Bakers e seus costumes.
Saímos da Verônica e fomos até o carro parado. O beco estava agitado, três caras e duas garotas. Uma delas estava no chão, caída e a outra estava encostada contra a parede, enquanto os três se dirigiam para ela, sorrindo.
― Ei sanguessugas ― eu disse, chamando a atenção e tirando minha pistola da cintura, mirando neles.
Um tiro. Dois tiros. Três tiros.
O primeiro tiro acertou um deles direto na cabeça, que caiu com um baque surdo no chão. Os outros dois conseguiram desviar, a garota se encolheu no chão, protegendo a cabeça com as mãos, chorando.
Os dois vieram para cima de nós, Lucas se adiantou a minha frente e ficou parado, esperando o impacto. Hector estava parado, de braços cruzados.
O primeiro atingiu Lucas, que sequer se mexeu quando foi atingido. Arremessado com o impacto, ele sorria. Sangue escorria de sua boca.
― Alguém sabe bater ― ele riu ― Minha vez.
Ele se jogou contra o que o atingiu e acertou-o na mandíbula, quebrando-a. Ele não tinha limitações sobre sua força, estava sempre pronto para chegar ao limite de seu corpo.
O segundo se adiantou para cima de Lucas, mas Hector o agarrou pelo pescoço. Ele abriu a boca dele, arrancando-lhe as presas de vampiro.
O vampiro olhou desesperado. Hector sorriu, mas seus olhos estavam sérios. Uma forte luz descia do braço de Hector, indo até o vampiro, entrando por seu pescoço e espalhando-se por seu corpo.
― Que deus tenha piedade de sua alma, se você ainda tiver uma.
A luz preencheu o beco, eu me encostei contra a parede, próximo a garota, cobri-a com minha jaqueta. Ela precisava de ajuda, aqueles dois poderiam cuidar daquilo.
Quando a luz passou, o corpo do vampiro se desfazia em cinzas. Ele limpou as mãos e olhou para mim.
― Tipíco, eu sabia que você ia acabar perto da garota Jack. ― ele disse ― Como ela está?
― Em choque, mas vai ficar bem ― respondi ― O que você fez com o cadáver?
Exorcismo celeste. Muito útil.
― Percebi. ― sorri ― Vai acabar nos deixando mal assim.
― Nah, não é algo que se possa fazer o tempo todo. Três vezes ao dia é o meu limite. ― ele respondeu ― Cadê o Lucas?
― Quando vi, estava batendo no outro vampiro.
― Espero que ele não o mate, precisamos de informações.
― Eu sei disso ― ouvimos sua voz, vinda de fora do beco ― Só que vamos precisar de um tempo.
Levantei a garota em meus braços e saímos dali. O carro negro parado estava destruído, Lucas e o vampiro provavelmente tinham acabado com ele em sua briga.
Lucas estava com os punhos cobertos de sangue e o ferimento em sua boca sangrava bastante, mas ele continuava sorrindo. Nem mesmo estava cansado.
O vampiro, por outro lado, estava desmaiado próximo ao meio-fio, a mandíbula partida, os braços quebrados ― virados em ângulos impossíveis, se não estivessem ― e uma de suas pernas fora arrancada. Estava jogada do outro lado da rua.
― Me lembra de nunca sair no braço com um Baker empolgado ― Hector disse, sorrindo. ― Na verdade, me lembre apenas de nunca sair no braço com um Baker.
― Feito ― respondi ― Agora, quer abrir o carro? A garota precisa ir pro hospital. Você a leva enquanto damos um jeito nesse sanguessuga?
― Claro. ― Ele respondeu.
Eu a coloquei no banco de trás, deitada, deixei minha jaqueta para cobri-la e Hector entrou no carro, antes de partir ele nos disse:
― Não façam nada divertido sem mim.
Lucas limpou o sangue de seu rosto com as costas da mão e acenou para ele. Voltamos nossa atenção para o vampiro.
― Caralho, cara, o que você fez com ele?
― Bati nele.
― Eu sei disso, animal, eu só quero saber de onde veio tanta raiva pra isso tudo.
― Ah, já fazia um tempo que eu estava sem me exercitar. Acho que eu, realmente, me empolguei.
― Vocês, Bakers, são intrigantes. Nem está cansado, está?
― Sabe que não. Não sabemos o que é estar cansado, ou o que é dormir, não depois da puberdade. ― ele respondeu.
― Certo, o que fazemos agora com esse troço? ― indiquei o sujeito desmaiado. ― Precisamos perguntar coisas à ele. Saber se ele sabe da Eve.
― Ele sabe.
― Perdão?
― Olha a mão dele.
Abaixei-me sem dizer nada, observei as mãos do vampiro por alguns segundos. A direita só estava destruída, mas a esquerda tinha uma marca. Uma runa tatuada. Duas cobras se entrelaçando, formando um E.
Levantei e puxei do bolso um cigarro, acendi.
― A marca dela? ― perguntei.
― É.
― Perfeito.
― Certo, hora de bancar o curandeiro aqui...
― Fique à vontade.
Lucas se abaixou, estendendo as mãos sobre o vampiro inconsciente. As feridas dele se fecharam lentamente, enquanto Lucas parecia ficar mais e mais cansado. Ele podia ser um bom curandeiro, mas era arriscado. Sua habilidade natural era a da cura, mas era um problema para ele. Ela esgotava muito de sua energia vital.
Quando o vampiro despertou, puxei Lucas para longe dele. O vampiro tentou atacar, mas ainda não tinha uma perna e seus braços haviam sido curados do jeito que estavam, sem coloca-los no lugar. Estava impossibilitado de qualquer coisa, exceto falar.
― O que fizeram comigo?! ― ele gritou
― Sem gritaria. ― a pistola estava apontada para sua garganta ― Qualquer coisa que disser, seu bostinha, pode e será usada contra você.
― Jack, essa foi a sua pior referência essa noite. ― Lucas olhou para mim, batendo a mão em sua face ― Sério.
― Eu sempre quis dizer isso num interrogatório. ― Sorri e, me voltando ao vampiro, ― Então, desgraçado, comece a cantar.
― Cantar? O que diabos quer dizer com isso?!
― Eve. ― Lucas repondeu ― Sabemos que está com ela. Que pertence à ela.
― Eu prefiro que me matem!
― Ah, mas nós vamos, mas antes você vai falar ― engatilhei.
Dei um tiro em sua perna restante.
― Isso foi um aviso, agora fale.

III
Já estávamos com Hector outra vez. Ele deixou a garota no hospital, disse às enfermeiras que ela tinham tentado estupra-la e ele a salvou ― coisa de anjo da guarda. Nos encontramos no mesmo beco em que ele nos deixou com aquele vampiro destroçado. Conseguimos as informações necessárias, Lucas acabou com ele quando terminamos. Só precisávamos, agora, ir até o esconderijo da bruxa.
― Sério, eu nunca vou entender essa associação de vampiros com bruxas ― eu disse, enquanto carregava minha pistola, sentado no banco de trás ― Será que só os Bakargy tem bom senso?
― Talvez sim, talvez não ― Hector respondeu ― Estou no caminho certo, não estou?
― Sim.
Lucas apanhou um taco de baseball que Hector guardava em seu carro. Estava entalhado com runas desconhecidas, mas logo assumimos que era o idioma celeste.
― Por que nunca te vi usar isso, Hec? ― ele perguntou ― Parece tão descolado.
― Eu nunca precisei dele.
― E o que ele faz?
― Nada que outros tacos não façam.
― E o que ele faz além disso?
Acaiah.
― Seu sobrenome? ― perguntei
― Não, Acaiah não é meu sobrenome. Eu sequer tenho um. ― ele respondeu ― Acaiah é anjo da guarda. Minha casta, sou um anjo guerreiro que serve ao arcanjo Gabriel, vocês sabem disso.
― É, mas sempre achamos que esse era seu sobrenome ― Lucas disse ― E o que isso tem a ver  com o taco?
― Ele é só um taco, Lucas. Eu só estou pegando no seu pé. ― Hector riu.
― Maldito ― Lucas riu também ― Então, posso pegar emprestado pra hoje?
― Claro.
Não demorou muito mais para que chegassemos. Estávamos em frente a uma casa de dois andares. Próximos ao cemitério da cidade. Tipíco para uma bruxa de almas. Como nunca pensamos nisso antes?
Entramos na casa sem dificuldades. O problema mesmo foi os guardas. Mais alguns vampiros estavam ali, parados, como se nos esperando.
Seguimos em uma luta rápida. Eu guardei a pistola, usando a faca de prata contra eles. Vampiros, tão ou mais sensíveis à prata quanto lobisomens eram. Feitos em cinzas, esmagados pelo bastão, ou com cabeças arrancadas pelo estilo de luta celestial, nós conseguimos limpar a área.
Mas nada da bruxa.
Pus meus sentidos para trabalhar. Não havia nada que ver ali, mas talvez eu pudesse ouvir ou farejar alguma coisa. Dois pontos para o homem-lobo. Sons e cheiros. Eu poderia até escolher.
― Caras, segundo andar. Vão indo na frente, vão lidar com mais alguns cadáveres e encontrar a bruxa. A única mulher ali. ― me virei, tomando o caminho contrário, indo para o porão.
― E você?
― Eu vou salvar uma donzela em apuros.
― É um cachorro mesmo. ― ouvi Lucas dizer, antes de eu descer as escadas.
No porão, encontrei uma garota amarrada. Estava amordaçada, chorava e tinha cicatrizes finas sobre o rosto. Torturada? Como uma tortura deixa marcas tão leves? Eu não tinha tempo para pensar sobre isso na hora, precisava tirar ela dali.
― Vai ficar tudo bem, guria.
Eu a desamarrei. Levei um gancho que me tirou os óculos.
― Vadia... ― murmurei ― Transformação recente, não é? Por isso você ainda tem cheiro de gente.
Ela tirou a mordaça e mostrou suas presas. Uma vampira nova. Ela estava em instinto puro, não tinha qualquer talento ou noção de como lidar com suas novas habilidades. E eu, bem, eu tinha isso à meu favor.
― Filhote de sanguessuga, tão simples de lidar contigo. ― acendi meu isqueiro.
Ela ainda não havia visto luz desde a transformação, ela ficou cega por tempo o suficiente para que eu pudesse cortar sua cabeça com minha faca de prata.
― Uma pena, uma garota tão bonitinha... ― acendi outro cigarro antes de guardar o isqueiro ― Bem, tem gente que não tem sorte na vida.

IV
Eu tive que correr, meu instinto dizia que era preciso correr. Eu sentia que meus amigos estavam com problemas e que precisavam de mim com eles. Eu não podia deixar meus amigos na mão, não era meu modo de viver.
Antes de subir as escadas para o segundo andar, verifiquei minha arma, estava carregada, pronta pra uso. Subi as escadas, atravessando dois degraus por vez, chutei a porta e entrei. Pé na porta e tapa na cara, era esse o pensamento que estava impulsionando minhas ações.
O lugar estava mal-iluminado, umas poucas velas preenchiam o lugar. Hector e Lucas estavam se erguendo de uma recente queda. O cheiro ali era óbvio, cheiro de cinzas e enxofre ― eles haviam destroçado vampiros.
― Ei vadia ― eu disse ― Você não vai mais machucar os meus amigos.
Ao centro do pentagrama, ao lado de uma garota insconsciente, estava uma mulher. Pele morena, cabelos e olhos escuros, vestido negro ao estilo Mortícia Adams, tatuagens cobriam sua pele nos braços e pernas, o rosto era bonito, mas parecia apenas uma impressão. Como se não fosse humana, era apenas uma lembrança da mulher que existia antes de se tornar a bruxa ali presente. Eve.
Ela riu com minha afirmação, a língua de fora, me encarando como uma sucúbo encara um homem a quem deseja. Eve era estranha, todo um jeito de mulher, mas também de monstro.
― Olá, monstro ― sua voz era suave, mas causou-me arrepios ― Chama isso de amigos? Fracos. Que não conseguem nem mesmo se manter de pé.
Ela estendeu a mão, meus amigos voltaram ao chão. Como se a gravidade ao redor deles tivesse se tornado mais pesada, obrigando-os a se curvar perante ela.
― Olha, vadia, eu não sou um monstro. ― retorqui ― Eu sou aquele que veio te mostrar que está errada, mas também sou seu executor. Seu carrasco.
Levantei meu braço, estendendo a arma à sua frente. Estava pronto para atirar, puxei o gatilho. O leve coice confirmou que o disparo foi efetivo, mas a bala nunca chegou à seu destino.
Perto do pentagrama, a bala se desfez em cinzas, enquanto Eve ria. Fechei minha expressão. Se armas de fogo não funcionariam, eu precisaria usar uma tática diferente de combate. Soltei a arma no chão e puxei a faca da cintura.
Com ela em mãos, avancei. Eve me encarava, sorrindo. Hector e Lucas ainda não estavam livres de seu domínio. Eu sabia que não podia com ela sozinho, magia não é fácil de lidar quando se está contando apenas com o físico. Mas quem não arrisca, não petisca.
Meus passos foram observados com atenção pela bruxa, ela sequer se moveu. Eu estava a um passo do pentagrama quando aconteceu. Como se houvesse uma barreira me impedindo de alcança-la, eu não podia entrar. Eve riu.
― Não pode entrar, monstro. ― ela disse ― Não sem minha permissão.
― Eu não estou nem aí pras suas regras, vadia. ― retruquei ― Eu não abaixo a cabeça para nada e nem ninguém.
― O que pretende fazer, então, monstro?
― Eu já disse que eu não sou um monstro! ― gritei.
Girei a faca em minha mão, mirando-a para baixo. Um movimento rápido e preciso. A faca cravou-se dentro do pentagrama que eu não conseguia alcançar. Eu estava certo. Eve rugiu, cuspindo sangue.
Hector e Lucas, enfim, se ergueram. Estavam livres de Eve. E ela, estava com problemas agora. Lucas apanhou o taco outra vez e Hector fez algo que não víamos desde que nos encontramos. Ele estendeu suas asas.
De suas costas, o par de asas se mostrou tão grandes quanto seu carro. E igualmente vermelhas. Asas de sangue. Ele as agitou, apagando as velas que iluminavam o cômodo. Estávamos no escuro. O que me ajudou em meu ataque furtivo.
Visão noturna. Uma benção e maldição ― por isso os óculos escuros o tempo todo.
Um soco. Um chute. O som de madeira acertando alguma coisa. Outro chute. Madeira. Soco. Apanhei a faca rapidamente e cravei-a no ventre de Eve, abrindo-a de baixo para cima.
Acendi meu isqueiro com o silêncio.
― É, essa é uma maneira diferente de cravar firme em alguém ― Lucas comentou, vendo o corpo dividido de Eve ― Mas, acho que foi melhor para o caso, Lunewalker.
― Ah, cala a boca, Baker ― respondi, limpando a faca na barra da camisa ― E a garota, Hec?
Hector se abaixou, tomando-a no colo.
― Morta.
― Pena... ― comentei ― O que fazemos com ela?
― Não sei, parece que está morta à alguns meses... Vou tentar achar alguém que esteja procurando por ela, mas é só o que podemos fazer. ― ele respondeu.
― Certo.
Apanhei minha pistola de volta, guardando-a na cintura, junto da faca.
Hector fechou suas asas sobre a garota, que desapareceu quando ele as reabriu. Lucas apoiou o taco sobre o ombro, sorrindo.
― O que fez com o corpo?
― Está em minha casa. Em meu refúgio.
― Entendo ― ele alargou o sorriso ― Mas e agora, o que fazemos?
Silêncio.
― Bar? ― sugeri.

V
De volta ao mesmo bar onde tudo começou. A tradição do Lunewalker. Após uma demanda bem sucedida, era preciso comemora-la. Era preciso um pouco de diversão após o trabalho.
Hector ergueu o copo, em um brinde, que nós acompanhamos. Sorrimos e bebemos. A bruxa malvada estava morta, uma garota morta, provavelmente, estaria sendo devidamente enterrada pela família preocupada.
E nós?
Nós estávamos à vontade outra vez em nosso devido lugar. O bar Princesa. Eu observava o lugar a nossa volta, Hector e Lucas discutiam os detalhes de nossa aventura.
Eu estava a procura de alguma coisa, mas as vozes em minha mente não me diziam o que era. Talvez não existisse algo pelo qual eu buscasse, talvez eu procurasse apenas por procurar, sem saber o motivo. E como eu não sei o que procuro, nunca vou saber quando encontrar. Ou talvez eu descubra o que procuro quando encontrar.

Só poderia saber quando acontecesse, mas naquele momento, eu estava bebendo com meus amigos. E era isso que importava naquele momento. Isso e a próxima cerveja!

Conto do Luneverso ― A Primeira Caçada

I

Janeiro de 2001

Eu estava ouvindo um disco do Metallica quando John apareceu no meu quarto num final de tarde qualquer. Ele carregava um embrulho em suas mãos e a expressão séria através das cicatrizes de seu rosto. A barba dele estava por fazer já havia alguns dias, ele sempre deixava ela assim quando se enfiava em uma pesquisa ou tinha algum assunto importante martelando em sua cabeça. Eu sabia que ele não estava pesquisando nada. Só não sabia o que estava o preocupando.
Meu padrinho sempre foi um homem de difícil compreensão. Como psicólogo ele aprendeu a esconder suas próprias emoções ― mas isso nunca o impediu de saber como os outros estavam apenas olhando para eles ― e isso era o maior quebra-cabeças da minha vida até aquele momento.
Há alguns anos eu descobri qual era o verdadeiro trabalho dele. O lance como professor e psicólogo na universidade eram apenas uma fachada, disso eu sempre soube, mas eu não sabia ainda qual era o lance que ele realmente fazia.
Caçadas.
Meu padrinho, o sargento John Hengerman, era um caçador. Não do tipo comum, daqueles que caça veados ou ursos, mas ele caçava coisas. O tipo de coisa que faria a mente de qualquer pessoa entrar em colapso. Eu tinha oito anos quando descobri isso.
Ele havia voltado a poucas horas de um evento longe da cidade, segundo ele a mando da universidade, mas o cheiro nele estava muito diferente do normal ― não era apenas álcool e nicotina, tinha algo mais. Sangue.
Ele notou que eu havia percebido, eu nunca consegui esconder coisa alguma dele. Ele afundou no sofá por algumas horas, não falou comigo durante três dias até tomar uma decisão. A decisão que mudou a minha vida até aquele momento, que fez com que ela se tornasse o que é agora ― e o que seria dali pra frente.
Meu padrinho me chamou até seu escritório e me contou sobre o Mundo Cinza. Uma determinação sobre o que há no mundo além do óbvio. Explicou por cima apenas ― a definição de existência, magia e anômalias ―, ele disse que haveria tempo para me treinar melhor, se eu quisesse. Eu quis.
Na manhã seguinte, ele começou a me ensinar artes marciais, aikidô. Eu não tinha disciplina, mas tinha vontade, energia e criatividade. Foi onde nos focamos. Eu precisava usar minha versatilidade ― palavras difíceis essas, não? ― de maneira útil. De maneira que eu pudesse sobreviver. Acabei criando um estilo próprio, uma maneira de usar o que havia ao meu redor como forma de atacar, me defender e desaparecer.
Meu olfato, minha audição e minha visão eram parte importante desse treinamento. Eu tinha que aprender a controla-los. Precisava dominar, não ser dominado. Eu treinei o reconhecimento de cheiros entre vários outros, aprendi a focar e ouvir em meio à barulhos extremamente irritantes e aprendi a usar minha visão em escuro quase completo, aprendi o suficiente para que ele não me apanhasse de surpresa. Eu precisava treinar todos os dias, das quatro da manhã até o meio dia. Se eu não fosse bom o suficiente, ficaria sem almoço. Sem mencionar em treino reforçado no dia seguinte, atingindo das quatro da manhã até as duas da tarde.
Os finais de semana, quando eu acordava cedo para assistir aos desenhos matinais? Não existiam mais para mim, eu estava sempre cansado. Ao menos eu tinha uma folga, não?
Era complicado. Mas a vida tinha um propósito. Eu estava sendo treinado para ser o melhor. Para não desistir frente aos problemas, não desistir sob qualquer circunstância. Esperando aquele momento que, enfim, chegou.
― Eu tenho algo para você ― ele disse, quando me entregou o embrulho.
Era pacote de tamanho médio, estava mal enrolado em papel pardo, adesivado em toda parte ― até mesmo onde não era preciso ― e havia um nome escrito, no único espaço sem fita. “Alice Lunewalker”. Minha mãe.
― O que é isso? ― perguntei
― Algo que deixaram comigo até o momento em que fosse preciso entregar. E bem, ― ele disse ― acho que, como amanhã é seu aniversário, está na hora.
Eu faria dez anos no dia seguinte. Dez anos de existência em um mundo ao qual eu ainda não entendia direito, mas tinha vontade de conhecer. Não era o meu mundo, mas ele um dia seria, mesmo que ninguém nunca chegasse a saber.
Sem qualquer cuidado com o papel, eu o arranquei do meu presente. Era uma faca. Uma faca com o cabo de madeira e couro, a lâmina reluzia mesmo com a fraca iluminação do por-do-sol que batia na minha janela, destacando as marcas entalhadas nela, tribais antigos. Passei o dedo pelo fio, estava afiada. Pronta para uso.
― Obrigado, padrinho.
― Você não olhou o mais importante, moleque. ― ele tomou ela das minhas mãos e virou a lâmina de lado, mostrando-me o que ele quis dizer.
Gravado na lâmina estava meu sobrenome. “Lunewalker”. A memória eternizada no metal.
― Do que ela é feita? ― perguntei, tentando ignorar uma lágrima que escorreu sem permissão pelo meu rosto ― não é um metal simples.
― Não. É prata.
― Você sempre disse que eu era alérgico à isso ― lembrei ― Como posso ter algo assim?
― Essa é diferente, não vai te machucar. ― ele respondeu ― Era da sua mãe. E da mãe dela antes disso, do seu avô antes disso e... Bem, eu teria que remontar toda uma linha do passado que não é fácil de lembrar com detalhes.
― Bem, então é uma relíquia de família.
― Algo do tipo. ― meu padrinho sorria ― E das boas. Vai descobrir quando usar.
― Como?
― Está na hora.

II
A noite correu rápida, eu faria dez anos em poucas horas e, naquele momento, o que eu mais queria era provar o meu valor. A cidade parecia quieta, mas havia algo nela que incomodava, como se todos os habitantes estivessem me observando, esperando que eu falhasse. Não gostava daquela sensação. Ela me perturbava, me deixava nervoso.
Meu padrinho me deu algumas notas rápidas antes que eu saísse de casa. Era a primeira vez em que ele me deixava sair sem sua supervisão de perto ou toque de recolher ― ou os dois.
Ele disse que eu não precisaria de mais do que aquela faca para o que ele estava me mandando ― na verdade, sinto que ele queria que eu me virasse apenas com a faca ― e que se eu tivesse aprendido direito o que ele me ensinou, eu, provavelmente, voltaria antes da meia noite.
Era um caso simples, ao menos segundo o que ele me disse que seria. Para mim seria fácil, ao menos. Eu deveria caçar um cão do inferno que estava causando alguns problemas próximo à saída da cidade.
Mas o que era exatamente um cão do inferno? Como ele se pareceria? Como eu reconheceria um cão do inferno entre os outros cães? John disse que seria fácil para mim, que seria fácil reconhecer o diabo-canino, mas falar sempre é mais fácil do que fazer.
A maior lenda sobre um cão do inferno era grega. O Cérbero. O cachorrão do Hades, guarda dos portões do reino dos mortos. Domado duas vezes por dois heróis, Hércules e Orfeu, um pela força e o outro pelo talento musical. Eu não podia contar com nenhum dos talentos, meu talento musical não era parecido com o de Orfeu ― o som de guitarras não se parece muito com liras ― e também não era forte como Hércules, que podia vencer um exército inteiro sozinho.
Mas havia algo na lenda que eu podia fazer uso para o meu caso. Guarda dos portões do reino dos mortos. Os cães do inferno podem não ter três cabeças como o Cérbero, mas cães de guarda ainda eram cães de guarda. Eu já tinha uma pista.
Ajeitei a faca no coldre improvisado preso à minha cintura e corri até o cemitério. Eu queria mesmo chegar em casa antes da meia noite. Não tinha muito tempo.

III
Covas abertas, esperando por aqueles que fossem usa-las pela eternidade. Mausoléus trancafiados de famílias importantes, criptas empoeiradas, flores adornando o pé de lápides. As árvores cresciam fracas sobre o solo de terra avermelhada, os portões de metal negro estavam enferrujados e parecia que iriam cair a qualquer momento. Aquele era o cemitério de São Miguel.
Aquele odor. Não era o cheiro de terra batida, não era o cheiro da umidade nem da poeira sobre o lugar, era um cheiro forte. Agridoce, parecia enxofre. Se a morte exala um cheiro quando anda pelo inferno, provavelmente era aquele.
E ela também espumava pela boca grande e cheia de dentes amarelados. Parado a minha frente estava um grande cachorro de pelugem negra e olhos amarelos, fedia incessantemente e me encarava como quem encara água no deserto. O predador e sua presa.
John Hengerman era um maldito, ele tinha razão... Não era um caso difícil, não era difícil encontrar um cão do inferno, o problema, acho, era matar.
Tirei a faca da cintura e a empunhei, o cão havia sumido.
Esquerda.
Fui derrubado em cima de uma lápide, minhas costas estavam ardendo. Era muito rápido. Rápido demais para mim. De que adiantava ter o olfato e audição apuradas se meu corpo não era rápido suficiente para reagir à tempo?
Esquerda outra vez.
Aquilo já estava começando a me irritar. A lápide desabou com meu peso sobre ela. Eu podia ouvir os rosnados do cachorro, cada vez mais próximos e, também, mais distantes. Pareciam vir de dentro da minha cabeça. Eu senti meu sangue ferver quando ele mordeu minha perna esquerda e desapareceu.
Eu precisava me acalmar. Precisava encontrar uma maneira de atuar ali. Uma criatura daquelas não poderia ser um problema tão grande ― afinal, eu não tinha experiência alguma como caçador.
Esquer... E eu consegui desviar, em cima da hora, mas eu consegui desviar.
O cão estava na minha frente.
Foi quando eu percebi o problema dele. Ele não conseguia enxergar direito, um de seus olhos estava ferido. Ele só conseguia acertar de um lado e, agora, eu tinha a vantagem.
― Chega de brincar com o cãozinho... ― murmurei
Ele desapareceu. Rosnados. Rosnados. Ganido.
A faca atravessou seu focinho. Ele tentou a esquerda uma última vez antes de falhar, torci a faca dentro de seu rosto, para ter certeza de que ele estaria morto quando eu a tirasse dele. Era minha faca, não iria deixar ela ali.
Limpei-a na barra da jaqueta e arranquei-lhe um dos dentes. Guardei-o no bolso e saí dali. John disse que aqueles corpos não duram na claridade imposta pelo sol, então eu o deixaria ali para o amanhecer. O importante era eu chegar em casa antes que meu tempo se esgotasse.

IV
― E então?
― Não foi difícil, padrinho ― eu disse, sorrindo.
Joguei a jaqueta sobre o sofá e desabei no mesmo, tirei meus tênis com os pés e fiquei encarando meu padrinho. Ele tinha um sorriso discreto no rosto.
― Quantas vezes você caiu?
― Duas...
― Ainda precisa de treino, mas está bom... Para um cão do inferno caolho.
― Obrig... Espera, como você sabia que ele era caolho?
― Quem você acha que arrancou o olho dele? ― ele sorria abertamente agora.
― Merda...
― Ainda assim, foi um bom trabalho.
― Significa que eu não vou precisar treinar amanhã? ― perguntei esperançoso.
― Não, só não precisará acordar tão cedo. Eu te acordo quando começarmos ― ele se levantou, indo até o corredor, em direção ao próprio quarto. ― Aliás, feliz aniversário, moleque.
Era meia noite, eu agora tinha dez anos. Tirei o dente do cachorro do bolso, eu tinha um plano para aquilo. Já havia visto fazerem antes, eu queria uma corrente com um dente. Aquele era meu próprio presente de aniversário. A lembrança da minha primeira caçada.

― É... Valeu.