I
Janeiro de 2001
Eu estava ouvindo um disco do Metallica quando John apareceu
no meu quarto num final de tarde qualquer. Ele carregava um embrulho em suas
mãos e a expressão séria através das cicatrizes de seu rosto. A barba dele
estava por fazer já havia alguns dias, ele sempre deixava ela assim quando se
enfiava em uma pesquisa ou tinha algum assunto importante martelando em sua
cabeça. Eu sabia que ele não estava pesquisando nada. Só não sabia o que estava
o preocupando.
Meu padrinho sempre foi um homem de difícil compreensão.
Como psicólogo ele aprendeu a esconder suas próprias emoções ― mas isso nunca o
impediu de saber como os outros estavam apenas olhando para eles ― e isso era o
maior quebra-cabeças da minha vida até aquele momento.
Há alguns anos eu descobri qual era o verdadeiro trabalho dele. O lance como professor e
psicólogo na universidade eram apenas uma fachada, disso eu sempre soube, mas
eu não sabia ainda qual era o lance que ele realmente fazia.
Caçadas.
Meu padrinho, o sargento John Hengerman, era um caçador. Não
do tipo comum, daqueles que caça veados ou ursos, mas ele caçava coisas. O tipo de coisa que faria a
mente de qualquer pessoa entrar em colapso. Eu tinha oito anos quando descobri
isso.
Ele havia voltado a poucas horas de um evento longe da cidade, segundo ele a mando da universidade, mas o
cheiro nele estava muito diferente do normal ― não era apenas álcool e
nicotina, tinha algo mais. Sangue.
Ele notou que eu havia percebido, eu nunca consegui esconder
coisa alguma dele. Ele afundou no sofá por algumas horas, não falou comigo
durante três dias até tomar uma decisão. A decisão que mudou a minha vida até
aquele momento, que fez com que ela se tornasse o que é agora ― e o que seria
dali pra frente.
Meu padrinho me chamou até seu escritório e me contou sobre
o Mundo Cinza. Uma determinação sobre o que há no mundo além do óbvio. Explicou
por cima apenas ― a definição de existência, magia e anômalias ―, ele disse que
haveria tempo para me treinar melhor,
se eu quisesse. Eu quis.
Na manhã seguinte, ele começou a me ensinar artes marciais,
aikidô. Eu não tinha disciplina, mas tinha vontade, energia e criatividade. Foi
onde nos focamos. Eu precisava usar minha versatilidade
― palavras difíceis essas, não? ― de maneira útil. De maneira que eu pudesse
sobreviver. Acabei criando um estilo próprio, uma maneira de usar o que havia
ao meu redor como forma de atacar, me defender e desaparecer.
Meu olfato, minha audição e minha visão eram parte
importante desse treinamento. Eu tinha que aprender a controla-los. Precisava
dominar, não ser dominado. Eu treinei o reconhecimento de cheiros entre vários
outros, aprendi a focar e ouvir em meio à barulhos extremamente irritantes e aprendi a usar minha visão em escuro
quase completo, aprendi o suficiente para que ele não me apanhasse de surpresa.
Eu precisava treinar todos os dias, das quatro da manhã até o meio dia. Se eu
não fosse bom o suficiente, ficaria sem almoço. Sem mencionar em treino reforçado
no dia seguinte, atingindo das quatro da manhã até as duas da tarde.
Os finais de semana, quando eu acordava cedo para assistir
aos desenhos matinais? Não existiam mais para mim, eu estava sempre cansado. Ao
menos eu tinha uma folga, não?
Era complicado. Mas a vida tinha um propósito. Eu estava
sendo treinado para ser o melhor. Para não desistir frente aos problemas, não
desistir sob qualquer circunstância. Esperando aquele momento que, enfim,
chegou.
― Eu tenho algo para você ― ele disse, quando me entregou o
embrulho.
Era pacote de tamanho médio, estava mal enrolado em papel
pardo, adesivado em toda parte ― até mesmo onde não era preciso ― e havia um
nome escrito, no único espaço sem fita. “Alice
Lunewalker”. Minha mãe.
― O que é isso? ― perguntei
― Algo que deixaram comigo até o momento em que fosse
preciso entregar. E bem, ― ele disse ― acho que, como amanhã é seu aniversário,
está na hora.
Eu faria dez anos no dia seguinte. Dez anos de existência em
um mundo ao qual eu ainda não entendia direito, mas tinha vontade de conhecer.
Não era o meu mundo, mas ele um dia seria, mesmo que ninguém nunca chegasse a
saber.
Sem qualquer cuidado com o papel, eu o arranquei do meu presente. Era uma faca. Uma faca com o
cabo de madeira e couro, a lâmina reluzia mesmo com a fraca iluminação do
por-do-sol que batia na minha janela, destacando as marcas entalhadas nela,
tribais antigos. Passei o dedo pelo fio, estava afiada. Pronta para uso.
― Obrigado, padrinho.
― Você não olhou o mais importante, moleque. ― ele tomou ela
das minhas mãos e virou a lâmina de lado, mostrando-me o que ele quis dizer.
Gravado na lâmina estava meu sobrenome. “Lunewalker”. A memória eternizada no metal.
― Do que ela é feita? ― perguntei, tentando ignorar uma
lágrima que escorreu sem permissão pelo meu rosto ― não é um metal simples.
― Não. É prata.
― Você sempre disse que eu era alérgico à isso ― lembrei ―
Como posso ter algo assim?
― Essa é diferente, não vai te machucar. ― ele respondeu ―
Era da sua mãe. E da mãe dela antes disso, do seu avô antes disso e... Bem, eu
teria que remontar toda uma linha do passado que não é fácil de lembrar com
detalhes.
― Bem, então é uma relíquia de família.
― Algo do tipo. ― meu padrinho sorria ― E das boas. Vai
descobrir quando usar.
― Como?
― Está na hora.
II
A noite correu rápida, eu faria dez anos em poucas horas e,
naquele momento, o que eu mais queria era provar o meu valor. A cidade parecia
quieta, mas havia algo nela que incomodava, como se todos os habitantes
estivessem me observando, esperando que eu falhasse. Não gostava daquela
sensação. Ela me perturbava, me deixava nervoso.
Meu padrinho me deu algumas notas rápidas antes que eu
saísse de casa. Era a primeira vez em que ele me deixava sair sem sua
supervisão de perto ou toque de recolher ― ou os dois.
Ele disse que eu não precisaria de mais do que aquela faca
para o que ele estava me mandando ― na verdade, sinto que ele queria que eu me
virasse apenas com a faca ― e que se
eu tivesse aprendido direito o que ele me ensinou, eu, provavelmente, voltaria
antes da meia noite.
Era um caso simples, ao menos segundo o que ele me disse que
seria. Para mim seria fácil, ao menos. Eu deveria caçar um cão do inferno que estava causando alguns problemas próximo à saída
da cidade.
Mas o que era exatamente
um cão do inferno? Como ele se pareceria? Como eu reconheceria um cão do
inferno entre os outros cães? John disse que seria fácil para mim, que seria
fácil reconhecer o diabo-canino, mas
falar sempre é mais fácil do que fazer.
A maior lenda sobre um cão do inferno era grega. O Cérbero. O cachorrão do Hades, guarda
dos portões do reino dos mortos. Domado duas vezes por dois heróis, Hércules e
Orfeu, um pela força e o outro pelo talento musical. Eu não podia contar com
nenhum dos talentos, meu talento musical não era parecido com o de Orfeu ― o
som de guitarras não se parece muito com liras ― e também não era forte como
Hércules, que podia vencer um exército inteiro sozinho.
Mas havia algo na lenda que eu podia fazer uso para o meu
caso. Guarda dos portões do reino dos
mortos. Os cães do inferno podem não ter três cabeças como o Cérbero, mas
cães de guarda ainda eram cães de guarda. Eu já tinha uma pista.
Ajeitei a faca no coldre improvisado preso à minha cintura e
corri até o cemitério. Eu queria mesmo chegar em casa antes da meia noite. Não
tinha muito tempo.
III
Covas abertas, esperando por aqueles que fossem usa-las pela
eternidade. Mausoléus trancafiados de famílias importantes, criptas
empoeiradas, flores adornando o pé de lápides. As árvores cresciam fracas sobre
o solo de terra avermelhada, os portões de metal negro estavam enferrujados e
parecia que iriam cair a qualquer momento. Aquele era o cemitério de São Miguel.
Aquele odor. Não era o cheiro de terra batida, não era o
cheiro da umidade nem da poeira sobre o lugar, era um cheiro forte. Agridoce,
parecia enxofre. Se a morte exala um
cheiro quando anda pelo inferno, provavelmente era aquele.
E ela também espumava pela boca grande e cheia de dentes
amarelados. Parado a minha frente estava um grande cachorro de pelugem negra e
olhos amarelos, fedia incessantemente e me encarava como quem encara água no
deserto. O predador e sua presa.
John Hengerman era um maldito, ele tinha razão... Não era um
caso difícil, não era difícil encontrar um cão do inferno, o problema, acho,
era matar.
Tirei a faca da cintura e a empunhei, o cão havia sumido.
Esquerda.
Fui derrubado em cima de uma lápide, minhas costas estavam
ardendo. Era muito rápido. Rápido demais para mim. De que adiantava ter o
olfato e audição apuradas se meu corpo não era rápido suficiente para reagir à
tempo?
Esquerda outra vez.
Aquilo já estava começando a me irritar. A lápide desabou
com meu peso sobre ela. Eu podia ouvir os rosnados do cachorro, cada vez mais
próximos e, também, mais distantes. Pareciam vir de dentro da minha cabeça. Eu
senti meu sangue ferver quando ele mordeu minha perna esquerda e desapareceu.
Eu precisava me acalmar. Precisava encontrar uma maneira de
atuar ali. Uma criatura daquelas não poderia ser um problema tão grande ―
afinal, eu não tinha experiência alguma como caçador.
Esquer... E eu consegui desviar, em cima da hora, mas eu
consegui desviar.
O cão estava na minha frente.
Foi quando eu percebi o problema dele. Ele não conseguia
enxergar direito, um de seus olhos estava ferido. Ele só conseguia acertar de
um lado e, agora, eu tinha a vantagem.
― Chega de brincar com o cãozinho... ― murmurei
Ele desapareceu. Rosnados. Rosnados. Ganido.
A faca atravessou seu focinho. Ele tentou a esquerda uma
última vez antes de falhar, torci a faca dentro de seu rosto, para ter certeza
de que ele estaria morto quando eu a tirasse dele. Era minha faca, não iria
deixar ela ali.
Limpei-a na barra da jaqueta e arranquei-lhe um dos dentes.
Guardei-o no bolso e saí dali. John disse que aqueles corpos não duram na
claridade imposta pelo sol, então eu o deixaria ali para o amanhecer. O
importante era eu chegar em casa antes que meu tempo se esgotasse.
IV
― E então?
― Não foi difícil, padrinho ― eu disse, sorrindo.
Joguei a jaqueta sobre o sofá e desabei no mesmo, tirei meus
tênis com os pés e fiquei encarando meu padrinho. Ele tinha um sorriso discreto
no rosto.
― Quantas vezes você caiu?
― Duas...
― Ainda precisa de treino, mas está bom... Para um cão do
inferno caolho.
― Obrig... Espera, como você sabia que ele era caolho?
― Quem você acha que arrancou o olho dele? ― ele sorria
abertamente agora.
― Merda...
― Ainda assim, foi um bom trabalho.
― Significa que eu não vou precisar treinar amanhã? ―
perguntei esperançoso.
― Não, só não precisará acordar tão cedo. Eu te acordo
quando começarmos ― ele se levantou, indo até o corredor, em direção ao próprio
quarto. ― Aliás, feliz aniversário, moleque.
Era meia noite, eu agora tinha dez anos. Tirei o dente do
cachorro do bolso, eu tinha um plano para aquilo. Já havia visto fazerem antes,
eu queria uma corrente com um dente. Aquele era meu próprio presente de
aniversário. A lembrança da minha primeira caçada.
― É... Valeu.
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