20 de maio de 2014

Conto do Luneverso ― Fada Perdida

I

Outubro de 2013

As chuvas jamais foram um problema em São Miguel. Vinham sempre na mesma época, auxiliando a plantação de café local. Naquela noite meu único problema com a chuva foi o fato de não conseguir manter um cigarro aceso fora de casa.
Não era problema fumar em casa, meu padrinho sempre fumava, mas eu gostava de fumar fora. De sair e observar o céu noturno. Com tantas nuvens ali não era possível qualquer observação. Coloquei uma jaqueta e fui até minha motocicleta, a Alma do Deserto.
Liguei a garota e saí sem um destino certo. Estranhamente eu não tinha vontade de ir ao bar, a chuva provavelmente havia espantado a clientela e não haveria qualquer diversão por lá.
Passei em frente à igreja, no centro da cidade, parei um pouco. Fiquei observando a estátua do arcanjo Miguel e pensava no que haveria para se fazer naquela noite. Harley estava trabalhando e, por mais que eu fosse fã de jogar cartas, eu não queria ir até a casa de jogos onde ela trabalhava ― até por que nós não estávamos muito bem, mais uma briga em nossa relação.
Enquanto estava ali, meu celular tocou. Gustavo Martins.
O que um membro d’O Bando da Lua estava querendo fora da época da reunião mensal? Não sei, mas eu atendi do mesmo jeito.
― Moony.
― Hey Jack, o que está fazendo agora? ― ele perguntou.
― Estou ótimo também, Moony, qual o lance?
― Dê uma passada aqui. Acho que temos um caso.
― Apanhe a cerveja, Moony ― sorri, desligando o celular e ligando a motocicleta outra vez.
Antes de sair, olhei mais uma vez a estátua ali parada. A chuva escorria por toda ela, parecia até mesmo que Miguel chorava por algum motivo, mas isso foi apenas uma divagação pessoal. O que a falta de álcool não faz, não é?

II
O apartamento do Moony era o reflexo dele mesmo como pessoa. A organização era impecável, muito ao contrário do meu quarto, que era a representação física do que era o Caos.
Os móveis eram bem cuidados, os livros estavam catalogados por ordem alfabética, até mesmo as almofadas do sofá estavam completamente alinhadas. Gustavo tinha até mesmo improvisado um cinzeiro, disposto na mesa de centro, feito com o fundo de uma garrafa de refrigerante.
Ele me fez tirar os tênis antes de entrar, o cara era mentalmente perturbado com a ordem em sua casa. Ele me estendeu uma lata de cerveja no momento em que abriu a porta, o que me fez sorrir.
― Moony ― cumprimentei
― Jack ― ele estendeu a mão, apertei-a.
Sentei em um dos sofás, o mais próximo possível do cinzeiro, tirei um cigarro do bolso e o acendi. Ele ligou um ventilador, virado para o lado de fora da janela ― era um lugar muito, muito, limpo. Magos e suas manias.
― Então, ― comecei, após o primeiro trago ― qual a urgência desse caso? Não é nem uma reunião formal do grupo.
― Eu sei, desculpe se atrapalhei qualquer plano seu ― ele disse ― Sei que está namorando agora e...
― Ah, Moony, corta essa. Você sabe muito bem que a Harley e eu estamos brigados. ― respondi, soprando a fumaça em sua direção, que ele tentou espantar abanando a mão em frente ao rosto ― Diz aí.
― O Arcano.
Olhei para ele, batendo as cinzas no cinzeiro, tirei meus óculos escuros. Aquela organização. O motivo de todos nós existirmos como conjunto.
― O que houve dessa vez?
― Há uma família, o professor os conhece, uma mãe e uma filha. ― ele disse ― São do povo feérico.
― Não sabia que o Arcano se interessava por fadas. Não parece coisa deles.
― Você sabe que almas são poderosas, mas almas de anomalias tendem a ser mais poderosas do que as humanas. Há muito mais energia do que as nossas.
― Certo, entendi. Fadas são feitas de pura magia, a alma delas é ligada unicamente com o mana. ― comentei. ― Então? Mataram elas e pegaram suas almas?
― Não.
― Não?
― Não. ― repetiu ―  A garota, a filha, não é uma fada. Mestiça. O pai dela era um caçador, amigo do professor, da época antes da Ordem.
Meu padrinho nunca falava de seu tempo antes da Ordem, a organização que ele fundou, mas todos sabiam que ele havia sido membro de uma outra organização de mesmo padrão. Estávamos enrascados, eu sabia disso.
― Então, a garota é especial. Mestiços são difíceis de encontrar ― comentei.
― É, casos muito raros. Ainda mais entre fadas e humanos. ― ele disse ― Não são como você, não são um povo feito para lutas, mas são um povo de poder único. Existem pela natureza.
― Certo, vamos me deixar de lado por um instante. O que fizeram com a garota?
― Sequestro, oras. ― ele respondeu ― Estão mantendo ela em cativeiro, pelo que eu soube, estão tentando extrair dela o potencial para gerar mais como ela.
― O que seria um problema. Poder demais nas mãos erradas.
― É, você entendeu.
― Então, como se sente com o que vamos fazer?
― Perdão?
― Oras, Moony, é uma caça às bruxas. Você é um bruxo também. ― sorri para ele, apagando o cigarro ― Não é meio irônico?
― Eu sou um mago psíquico, Jack, não sou um demonólogo como elas.
― Você sabe que isso é apenas uma teoria, não sabe?
― Eu sei, mas é o mais aceito entre os membros da Ordem. Ao menos os que estão estudando sobre a Arte.
― Vocês magos vivem querendo nos deixar mal.
― Não é verdade, caçadores são importantes também!
― Só estou pegando no seu pé, Moony. ― levantei ― Quando partimos?
― Imediatamente.
― Você sabe onde estão? Como? O Oráculo outra vez?
― Kobra.
― Ah, aquele cara... Sabe que não confio muito nele, não é? Não parece ser do tipo que joga no time dos mocinhos.
― Ele é útil. ― ele respondeu ― E se quer saber, nem o Oráculo é um contato muito confiável.
― Eu sei, toda vez que você fala com aquele mendigo você fica fraco e precisa de uns dois dias pra recarregar as baterias ― comentei ― Ainda me surpreendo em lembrar que você falou com ele poucas horas antes de enfrentarmos aquele dragão.
― Vai ver meu corpo não é tão fraco quanto aparente ser para você, Caçador.
― Você quem diz, Mago Psíquico.
― Só mais uma coisa...
― Atire.
― Não acha que o Frank vai ficar sentido com nossa atuação sem ele?
― Você deposita pouca fé no Frankie, sabia? Ele nem está na cidade, saiu para resolver alguma coisa da ordem dele.
― Espero que ele não esteja com problemas.
― Você se preocupa demais.
― Sou um bom amigo.
― Eu também sou, por isso sei que ele está bem. ― retruquei ― provavelmente está agora mesmo enfiado na cama com alguma garçonete que encontrou onde quer que ele esteja.
Gustavo me olhou, sério. Recoloquei meus óculos. O silêncio foi quebrado com nossas risadas. Era quase certo o que Frank estaria fazendo naquele momento, isso se ele já tivesse terminado o que havia ido fazer.

III
A chuva diminuiu bastante no pouco tempo que estive no apartamento do Moony, me pergunto se ele teria alguma influência nisso, mas como um mago da mente poderia influenciar a natureza? Até onde sei, ele tinha poder apenas, bem, sobre a mente! Mas bem, cavalo dado não se olha os dentes...
Moony estava no carro dele e eu o seguia de perto em minha motocicleta. O que há de novo desde nossa última atuação juntos? Bem, Moony aprendeu um truque ou dois com os membros da Ordem que estudavam a mente. Um elo mental, melhor do que walkie-talkies ou celulares.
“Então, como vai o novo livro?”, perguntei.
“Ahn? Ah, eu esqueci por um momento que havia feito esse elo quando saímos de casa... O livro está andando bem. Estou tendo alguns problemas com alguns personagens, mas está tudo indo bem”.
“H-eh, avise se precisar de um pouco da minha poesia”.
“Meu livro não tem espaço para nada que lembre Bukowski, Jack! Eu tenho minhas próprias influências!”
“Só sugeri, relaxa”.
Ele fez uma curva brusca. Eu tive que forçar o guidão por instinto para continuar seguindo ele.
“Aliás, esse negócio de elo mental... Não é arriscado?”
“Não há como interceptar e...”
“Não, não por isso. Eu quis dizer, comigo. Você sabe, minha mente é um caos”.
“Eu pensei muito sobre isso desde que aprendi a fazer o elo, mas ainda não tive qualquer conclusão sobre os efeitos de um elo mental em uma mente fracionada como a sua”.
“Ou seja...?”
“Eu precisava de um teste prático para saber”.
“Claro, claro... Às vezes você me lembra muito os Bakers, eles quem gostam de correr riscos”.
“Para evoluir é preciso tomar certos riscos”.
“Você quem sabe, não vou ser eu quem vai ter problemas mesmo... Dessa vez”.
Outra curva.
IV
Já fazia alguns dias que eu não ia até a parte baixa da cidade. Não sei o que diabos o Moony queria enfiando o carro dele ali, mas o risco era dele. Se bem que nenhum civil conseguiria levar o carro daquele mago e seria muito difícil alguma anomalia querer andar de carro.
Parei a Alma do Deserto próxima ao carro dele. Certifiquei-me que minha pistola estava na minha cintura, junta com a faca de prata que eu carregava sempre comigo.
― Aqui? O Arcano anda passando por problemas no orçamento? ― perguntei ao ver que ele encarava um prédio abandonado ― Parece o galpão onde eu tive o primeiro contato com a Harley.
― Estou sentindo uma pontada de saudades vinda de você, Lunewalker? ― maldito, alfinetadas assim são golpe baixo.
― Talvez, Moony, talvez ― fechei a cara, procurando por um cigarro na jaqueta. ― Sinceramente, não sei se vamos durar por muito mais tempo.
― Okay, Jack, vamos tricotar sobre isso depois de resolver esse caso, será que consegue não pensar em você por algumas horas?
― É hora da caça, Mago.
Gustavo se adiantou ao prédio abandonado, próximo a porta de entrada. Uma porta de metal enferrujado, corroído pelo tempo, parecia que já faziam anos que ninguém mexia ali. Ele deu duas batidas na porta.
“O que esse maluco está fazendo?” perguntei-me
“O elo ainda está funcionando, Lunewalker”.
“É, eu sei, era pra você ouvir”. Não era. “Então, o que está esperando? Quer que eu derrube isso aí?”
“Já vai ver”.
Silêncio.
Silêncio.
Barulho de metal se movendo. A porta se abriu, revelando uma boate apinhada. Magia, sempre agindo de maneira engraçada ― nesse caso, ocultava uma boate de anomalias.
Luzes fortes e coloridas rodavam pela sala, Daft Punk tocava à um volume absurdo, quase não havia espaço para se andar da porta até o balcão de bebidas, a única explicação possível era que ali era mesmo uma boate feita para anomalias.
“Não se perca, Jack”.
“Eu estou tentando, mas... Luzes, cheiros, sons... Tudo muito forte aqui, está zoando meus sentidos”.
“Por isso é o lugar perfeito contra você. Concentre-se na mente e deixe o exterior de lado”.
“Falar é fácil, desgraçado, experimenta estar no meu lugar uma vez na vida, você não duraria dez segundos”.
Era realmente complicado estar em um lugar daqueles quando se funciona basicamente usando seus sentidos, foi preciso muita concentração para que eu não tivesse um derrame ― principalmente quando trocaram o som por uma batida repetitiva de algum tipo de funk. Realmente era uma boate.
“Moony, me diz... Por que estamos mesmo aqui? Não parece o lugar onde o Arcano estaria trabalhando”.
“Acredite, é exatamente esse o lugar”.
“Merda... Eu vou parar um pouco, cara. Preciso de uma bebida antes de continuar qualquer coisa”.
“Está mesmo com problemas com isso, não é?”
“Não, imagina...”
Apoiei-me no balcão, minha cabeça girava e eu sequer tinha consumido qualquer coisa. Não dá pra entender como as pessoas vão em lugares como esses. Shows são uma coisa, mas boates? Boates são o pior do pior.
Pedi um bloodymary por algum motivo. Eu não costumo beber essas coisas, meu cardápio está sempre em cerveja, uísque, conhaque e rum. Meu drink veio logo, tomei-o de gole e olhei pro Moony que ria de alguma coisa discretamente. Uma garota se jogou em mim, envolvendo seus braços em meu pescoço, tentando me beijar.
Se eu estivesse solteiro, teria sido fácil demais, mas por mais que eu estivesse brigado com minha namorada, eu ainda estava em um relacionamento sério e monogâmico. Dureza essa vida ― como o Daniel conseguia viver com a Lavínia? Vai ver eu nunca saberia direito o que é isso, mas de qualquer modo, tirei a garota dos meu pescoço.
― Me beija ― ela disse.
― Nah, beija ele ― e joguei ela para cima de outro cara.
Saí dali, enquanto ela se agarrava com o cara que me agradecia em um sinal mudo de positivo com o polegar. Já estava na hora do Moony me dar algumas explicações.
“Sério, Moony, você deve me odiar, não é? Pra me trazer num lugar desses...”
“Relaxe, homem. Nós estamos quase lá”.
Eu o segui até os fundos da boate, próximo ao palco havia uma porta que dava para os bastidores, mas não era apenas para lá que ela levava. Havia uma escadaria, descendo e descendo através da escuridão.
“Por algum motivo está tocando Dire Straits na minha cabeça, isso faz sentido?”
“Dire Straits? Até que faz, você é fã, não é?”
“Meu padrinho é, eu não sou um fã de verdade”.
“Bem, estamos aqui”.
“E onde é, exatamente, ‘aqui’?”
Gustavo indicou a porta ao fim da escadaria. Me olhou de maneira séria, era ali que as coisas se complicariam. Saquei minha pistola e conferi como estavam as balas, eu estava pronto.
Ele recitou algum de seus encantamentos antes de se afastar, dando-me espaço para acertar a porta com um chute. A porta se quebrou, revelando mais escuridão.
“Não consigo ver aqui” ele disse “Vamos nos manter unidos pelo elo, não é preciso falar”.
“Eu ‘tô ligado” respondi “E bem, se houvesse algo aqui, já teria atacado. Ou eu teria sentido o cheiro. Parece tão vazio quanto às ruas lá fora”.
“Estranho”.
“Espera, Moon”.
Um cheiro fraco estava ali. Parecia quase inconsciente. Apanhei meu isqueiro no bolso interno da jaqueta e o acendi. Gustavo avançou rapidamente quando vimos o que era. Ou melhor, quem era. Uma garota. Provavelmente a garota, afinal, ele estava tentando ajudá-la a levantar.
Guardei a pistola de volta na cintura e o ajudei com ela. Ela estava fraca, sangue escorria de sua boca e costas. Ela era pequena, tinha cabelos bem mais compridos do que os meus, mas tão escuros quanto. Ela estava com um vestido azulado, estava em frangalhos. Algo foi feito com ela, estava catatônica.
“Moony, desfaça o link.”
“Não é um link, é um elo”.
“Dá na mesma, só ajuda ela a recobrar os sentidos, cara. Vai ver é preciso de mais concentração e eu sei que isso te priva de muito do seu mana”.
― Okay, okay ― ele disse.
Gustavo tocou-a na testa, aos poucos ela recobrava a cor de suas bochechas, recobrava o brilho nos olhos. Ela estava acordando. Tomei-a nos braços e mandei ele ir na frente. Precisávamos sair dali sem sermos vistos, por sorte estávamos na parte de trás da boate. O que nos deu a desculpa de usar a porta dos fundos.
Estávamos saindo quando um dos seguranças nos chamou de volta. Pelo cheiro, era claramente um vampiro, mas não era da cidade. Não cheirava a Bakargy.
― O que houve aqui, camaradas? ― ele perguntou.
― Ela desmaiou, foi pisoteada. Estamos levando ela para casa ― Gustavo respondeu.
― Ahã. Escute, eu preciso saber o que aconteceu de verdade, ou eu vou ter problemas com minha chefe.
Não, você não precisa saber o que aconteceu. ― Gustavo disse, a mão se fechando do lado do corpo, ele estava recitando seu encanto na mente, eu tinha certeza.
― É, eu não preciso saber o que aconteceu. Vão logo antes que arrumem encrenca, ouviram?
Quando coloquei a garota deitada no banco de trás do carro do Moony virei para ele e disse:
― Então, desde quando você é Obi-wan? ― perguntei com um sorriso sarcástico.
― Ah, cala a boca ― ele respondeu ―, vamos, a garota precisa de ajuda.
― Okay, eu te sigo.
Quem me dera que as coisas fossem fáceis. Moony percebeu minha agitação antes mesmo de mim, eu estava com minha faca na mão e não me lembrava de tê-la apanhado.
O som de um salto alto batendo no chão e se aproximando era ouvido naquela rua, a iluminação vacilou. Parada a nossa frente estava uma mulher magra de vestido vermelho. O vestido era colado em seu corpo, mas ela não tinha exatamente curvas para demarcar com aquele vestido.
― Ei magricela, ― eu disse ― você não vai encostar um dedo na garota!
Ela riu. Gustavo parou ao meu lado, fechando a porta do carro. Ele estendeu sua mão em direção à mulher, que se contraiu quando a energia possuiu lhe a mente.
Ele estava dentro da cabeça dela. Estavam em um embate mental, como eu sabia que ele faria. Era o que eu precisava, mas tive que esperar pelo sinal. O sinal de que ele não estava completamente lá. Que era seguro atacar.
“Agora” ouvi sua voz em minha mente. Ele havia ficado bem mais forte desde o embate com o dragão.
Adiantei-me até a mulher, ela fez um movimento errado no tabuleiro quando decidiu ir até nós sozinha. Erro que ela não tornaria a repetir, por que não teria outra chance.
A faca de prata atravessou-a no peito, atingindo seu coração. Torci a faca sem tira-la de dentro dela, só para ter certeza de que ela iria morrer ali.
Gustavo baixou a mão. O corpo dela caiu. E o dele também. Ele estava exausto, o quanto de poder ela conseguiu com o que havia feito à garota-fada? Às vezes é melhor não saber desse tipo de coisa.
Abri o porta-malas do carro dele e joguei o corpo morto dentro. Esperei que ele estivesse melhor para dirigir. Quando estava pronto, estava amanhecendo. Pelo menos conseguimos concluir o objetivo da noite. Resgatamos a garota e, de bônus, matamos uma bruxa do Arcano.

V
De volta ao apartamento, eu tinha feito café, a garota havia recobrado a consciência e estava no banho. Ela precisava limpar o sangue que havia em seus ferimentos, que aos poucos se curavam. Fadas, se curam tão rápido.
Estávamos na cozinha, sentados um de frente ao outro, em silêncio. O único som que era feito era o do chuveiro e dos biscoitos que eu mastigava, Moony estava refletindo sobre os acontecimentos da noite.
Eu estava para acender um cigarro quando ouvi ela dizer:
― Pode não fazer isso?
Ela estava usando um vestido que comprei em uma loja qualquer no caminho. Por sorte, coube direito nela.
― O quê? Fumar? ― perguntei
― É, eu não gosto de fumaça... Sou alérgica.
― Grande... ― guardei o cigarro de volta no maço ― Então, qual o seu nome, tampinha?
― Isadora Echeverria.
― Eu sou Jack Lunewalker e aquele é o Gustavo Martins. ― indiquei o amigo a minha frente ― Nós tiramos você das garras do Arcano.
― Obrigada... Eu não sei como agradecer.
― Que tal contar o que aconteceu? Já seria de grande ajuda ― sugeri ―, o cara ali é um grande curioso.
― Bem, eu não sei de tudo. ― ela respondeu, como quem se desculpa ― mas o que eu sei é que... Eu não tenho mais as minhas asas, nem mesmo minha ligação com a Mãe.
― Fala da sua alma-feérica? ― perguntei. ― Se for, eu tenho uma coisa pra você.
Tirei do bolso da jaqueta um pequeno frasco com um conteúdo enevoado e brilhante, pulsando em cem cores diferentes por vez.
― A escolha é sua ― comentei ― Pode ser uma garota normal e sem graça, ou uma mestiça com alguns poderes que podem ser bons e também dar algumas dores de cabeça.
Joguei o frasco para ela. Ela o abriu sem demora. O conteúdo flutuou no ar e ela o apanhou outra vez. Os ferimentos visíveis se fecharam sem deixar vestígios, mas os ferimentos de suas costas apenas cicatrizaram.
― É, imaginei que fosse possível. ― Gustavo se pronunciou ― Sinto muito, não conseguimos recuperar suas asas.
― Tudo bem. Eu fico feliz em estar viva.
― Essa é uma garota positiva! ― comentei, sorrindo.
Silêncio. Ela se sentou ao meu lado.
― Eu posso pedir mais uma coisa?
― Pode.
― É que... Meu pai era um caçador, ao menos é o que minha mãe diz, e... Eu queria aprender.
― Aprender a caçar? ― perguntei
― É. ― ela respondeu ― Quero fazer pelos outros o que fizeram por mim... Eu sou assim.
Sorri.
― Bem, o padrinho bem dizia que já estava na hora de eu encontrar alguém para ensinar o que eu sei.
VI
Deixamos a garota em casa, com meu número de celular. Ela me ligaria assim que estivesse preparada para a primeira aula de caça. Falei com sua mãe, ela ― além de bonita ― compreendeu o desejo da filha, nos agradeceu pelo que fizemos. Ganhamos um pedaço de bolo estranho, mas gostoso do mesmo jeito.
Gustavo continuava quieto o dia todo.
Sentei-me de volta no sofá, acendendo, finalmente, o cigarro que queria acender. Traguei-o lentamente, apreciando a nicotina preencher meu corpo e, com a fumaça fora de meus pulmões, perguntei:
― Qual o lance, cara?
― A bruxa.
― O que tem ela?
― Ela me mostrou o que não consegui ver quando o elo estava funcionando. ― ele respondeu ― Eu vi sua mente, como ela aparece para você.
― Ah, só isso?
― Não é assustador?
― Não sei, depois de alguns anos eu me acostumei.
― Como você consegue lidar com vozes tão diferentes o tempo todo falando com você?
― Eu bebo... Me ajuda a manter elas quietas, ou pelo menos me ajuda a não ouvir aquele lado da mente... O Monstro.
― Bem, você não é um monstro, amigo.
― Eu sei disso, Martins! ― retruquei ― Já passei muitos anos achando que era, mas eu sei que não sou um monstro. Eu escolhi não ser. E é isso que me basta.
― Se você diz.
Silêncio.
Batidas na porta. Ela abriu sem que Gustavo tivesse levantado, era Carlos Frank. Ele sorria, como sempre, e sentou-se conosco:
― Senhores! A diversão voltou a cidade! O que eu perdi nesse meio tempo?

E toda a nossa aventura foi relatada ao Mago Etéreo.

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