Enquanto
uma leve garoa caia sobre o jovem, seu cabelo comprido esvoaçava ao forte vento
que tentava, inutilmente, mudar seu curso, que caminhava sem destino, com as
mãos em seus bolsos – manuseando o isqueiro que havia em um deles – com uma
expressão séria ele andava sem saber para onde seus pés o levavam. Quando dera
por si e olhara a sua volta, reparara em uma casa.
Ele
piscara, não acreditando em que seus olhos, negro-acinzentados, o mostravam. A
primeira vista não aparentava haver nada de surpreendente, era de uma
arquitetura simples – com janelas e porta enferrujadas e um pequeno quintal
malcuidado –, quase rustica. Nada que chamasse a atenção de alguém, a casa
parecia ter sido feita exatamente para não ser notada, devido sua localização –
em meio a outras, há muito, abandonadas. Mas para ele, em geral, as coisas tinham
um motivo para chamar à atenção. Ele não sabia naquele momento, mas aquela casa
havia de ter-lhe atraído o olhar por um motivo em particular, que logo lhe
seria revelado.
Ele
permaneceu por vários minutos encarando a casa, como se esperasse que alguém
fosse sair, antes de seguir seu caminho.
Caminho
que o levou a uma grande feira. Talvez não tão grande quanto parecesse à
primeira vista, mas relativamente grande. O intoxicante cheiro de comida era
inconstante e pessoas de todos os tipos estavam por lá, desde muito jovens a
muito velhos. Artistas apresentavam seus números paralelamente e em grande
harmonia. Os sons de diversas melodias misturavam-se as vozes dos passantes,
tornando impossível distinguir um som do outro. Parecia tudo estar interligado
de alguma forma.
A
chuva – que ali parecia afinar – não incomodava as pessoas. Talvez o bom-humor
inibisse qualquer outra sensação, ele não sabia. Não sentia nada. Estava
indiferente aquilo tudo. Ele vagava por entre as pessoas procurando por algo
que o interessasse. O carma de quem procura algo é que no fim, esse alguém
acaba encontrando.
Uma
aglomeração estava se formando e, entediado, ele fora tentar descobrir o que acontecia.
No olho da confusão, havia duas pessoas discutindo aos berros, nos poucos
minutos que ele perdera ali constatou que era uma simples briga de casal.
– Hunf
– resmungou enquanto tentava contornar a confusão. – Não é assunto meu e muito
menos deles...
Mesmo
a distancia ainda era possível ouvir os gritos do casal, aquilo era tedioso.
Por que as pessoas tinham que ser tão desagradáveis? Por esse motivo ele deixou-se
guiar até o cerco dos animais. Cães.
Seus favoritos em todos os seres pluricelulares.
– Oi
amigo – dizia ele, acariciando a cabeça um filhote de labrador. – Eu sei que você
quer sair daqui. As pessoas não entendem o que é... Precisar de espaço para
esticar as patas.
– Eu
acho que você também não. – Ouviu uma voz feminina dizer próximo a si.
– Não
fale do que não sabe. – Disse ele, erguendo-se, sem olhar para a garota. – Entendo
muito mais os cães do que pode imaginar... Na verdade, sinto-me mais a vontade
com eles do que com humanos.
– É
falta de educação falar com alguém sem olhar esse alguém nos olhos – resmungou
ela forçando-o a encará-la. – Ainda mais se esse alguém é uma garota.
Era
uma garota estranha, era o que sentia sobre ela. Estatura baixa, seu cabelo
dourado não era muito longo, ligeiramente menor que o dele, a leve maquiagem em
tom azulado ressaltava seus olhos castanhos. Possuía uma linha firme de
expressão o que lhe proporcionava um ar durão, acentuado com um pirulito em sua
boca. Ela chamava-lhe a atenção.
– Quem
pensa que é para me dizer o que fazer? Minha mãe? – zombou ele, dando-lhe as
costas.
– Ei!
– ela gritara. Por que ela fez isso? Era incomodante...
– Pode,
por favor, não gritar? – ainda de costas ele pediu, era estranho ele usar de
boas maneiras com alguém. – Isso machuca.
– Machuca...?
– ela estava confusa. – Como assim?
– Coisa
minha... Esquece.
– Não!
– ela tornara a gritar.
– Eu
já pedi pra não gritar garota! – ele voltara-se para ela com violência.
Visivelmente irritado, havia perdido o ar sereno que até então mantinha, sua
mão direita pairava a meio caminho do rosto dela.
– Não
briga comigo! – ela gritou novamente, não aparentava ter percebido o possível
soco que levaria.
Isso
o confundira. Há poucos instantes ela ostentava um ar rebelde, um ar de teimosia,
mas agora parecia indefesa. Não apenas isso, ela parecia alguém a quem ELE
deveria proteger... Muito estranho.
– Er...
– gaguejou, deixando seu braço cair ao seu lado.
– O
que vai fazer hein?! – replicou ela, voltando a sua postura anterior. Era
realmente uma garota estranha.
– Vem
comigo – disse enquanto recolocava as mãos nos bolsos e tornava a andar.
– Para
onde vamos? – perguntara quando o alcançara.
– Apenas
me siga... – ele dera de ombros e continuou a andar.
Ele
permanecera absorto em seus próprios pensamentos o caminho todo. Não sabia por
que estava dando atenção a essa garota, mas sabia que deveria. Era o que seu
instinto lhe dizia para fazer.
– O
que você bebe? – perguntara, por fim, ao chegarem a uma pequena barraca em um
canto da feira, uma barraca simples, mas armada em um ponto onde era difícil de
ser notada. Havia pouca iluminação, deixando-a mais oculta do que já,
naturalmente, era.
– Nada
com álcool
– Por
quê? Fraca demais para a bebida? – zombara.
– Não,
apenas não bebo com quem eu não conheço.
– Certo...
– E
você, não bebe? – ela perguntara curiosa ao ouvi-lo pedir dois sucos de
laranja.
–
Não.
– Fraco
demais para bebida? – ela sorria de forma provocante.
– Não
bebo por motivos próprios... Motivos que não dizem respeito a você.
Quando
chegou, a garota começara a adoçar a bebida. Parecia não haver limite, pois ela
não parava de encher o copo, colherada por colherada, com açúcar. Ela só parou
quando havia uma camada de mais de três dedos de açúcar no copo.
– Se
era pra você morrer por diabetes, não morre mais!
– Eu
gosto de açúcar! – ela replicou, com um sorriso infantil no rosto.
– Estou
vendo... – disse ele, com expressão de espanto.
Ele
a olhava, interessado, sentia que já havia a visto em algum lugar.
–
Eu conheço você? – ele desistira de vasculhar, em busca da garota, sua memoria
quando ela terminara seu suco.
–
Acho que de vista, todos os passantes acabaram me conhecendo. – ela brincava
com o açúcar que havia no fundo de seu copo. – Eu estava ali – ela apontara
para onde havia a confusão que ele vira mais cedo – discutindo com o meu “ex-namorado”.
–
Era você então? – ele sorrira – Bem que eu já havia ouvido seus gritos.
–
Ei!
A
noite aprofundara-se e os dois ficaram juntos andando pela feira.
Descobriram
ser bastante parecidos, embora completos opostos. Ele preferia o sal enquanto
ela açúcar. Ele gostava de cães e ela gatos. Ele amava o fogo e ela a água. Estavam
absortos conversando que não reparam que já era tarde e que ela precisava ir
para casa.
–
Me levaria até em casa?
–
Ninguém mais por aqui me instiga a uma conversa decente. Então, sim... Eu te
levo. – ele sorria fracamente.
Ela
o guiava, afinal, ele não sabia onde era sua casa. Apesar da maneira como se
conheceram, ela o fazia sorrir. Era engraçado vê-la atravessar as ruas enquanto
os carros seguiam. Ela o puxava pela mão para que corresse com ela. Coisa que
ele, por bom-senso não fazia. Não foram poucas às vezes em que ele a conteve, para
evitar que ela fosse atingida por algum carro. Nessas – muitas – vezes, ela parava em meio à rua e sentava-se e lá
permanecia, parecendo uma criança emburrada.
Quando
finalmente chegaram o caminho, para ele, parecia muito mais curto se ela não
tivesse o feito tantas vezes. Ao olhar a casa ele percebera onde estavam. Era a
casa que mais cedo ele havia notado. Não podia ser obra do acaso, era coincidência
demais.
–
Você mora aqui?
– Moro,
por quê? – indagou curiosa.
– Nada
demais... – ele não parava de encarar a casa, como antes ela parecia convidá-lo
a entrar. Como se houvesse algo a mais naquele lugar, algo que ele não sabia o
que era.
– Bem,
boa noite... – ela subira na ponta de seus pés para beija-lo em seu rosto.
– Boa
noite... Qual o seu nome? Quer dizer, passamos a noite andando juntos e nem sei
como se chama. – Ele saíra de seu transe e reparara nesse fato. Um leve deslize
de sua parte, não achava que deveria saber o nome de todos, mas com ela era
diferente... Por algum motivo.
– Agatha,
e o seu?
– Mas
se preferir pode chamar-me de Jack – respondera voltando seu olhar da casa para
ela. – Boa noite... Agatha.
– Boa
noite Jack.
– Boa...
– ele beijara sua testa e deixou-a parada em frente à própria casa.
Com
as mãos nos bolsos, seguia pelas ruas escuras da cidade... A noite tinha sido
estranha, até mesmo para os padrões dele.