18 de junho de 2014

Conto do Luneverso ― Marionetes de Sangue

I
01 de Janeiro de 2014

Eu estava quase perdendo o controle da Alma do Deserto, tamanha era à força da chuva naquela noite. Eu estava mais preocupado com a garota em minha garupa e com a motocicleta do que comigo. Ela estava sob minha guarda e a motocicleta era um de meus bens mais preciosos. Eu já não sentia mais minhas extremidades por causa do vento frio e meu corpo estava completamente encharcado, minha jaqueta estava com a garota para que ela se aquecesse.
Quando aquele hotel apareceu em nosso caminho, eu agradeci a Lua pela benção. A garota estava agarrada a minha cintura, ela tremia muito e eu estava preocupado com a possibilidade de ela acabar pegando alguma doença. Deixei-a na portaria com as mochilas, dizendo para que fosse fazer o registro enquanto eu deixava a motocicleta no estacionamento. Não havia muitos carros, era um hotel de estrada, pouco movimento, mas parecia aconchegante. A época também nos ajudava, as pessoas já deveriam estar com suas famílias, nós éramos um dos poucos casos raros de pessoas na estrada.
― Uh, que chuva é essa, fada? ― abracei-a quando voltei, ela estava batendo os dentes, parada em frente ao balcão ― Fez nosso registro?
― Fiz, mas só tinham quartos de casal ― ela respondeu ― É um problema?
― Não vejo por que seria. O quarto tendo um sofá, ou um travesseiro sobrando, para mim está bom ― sorri para ela ― Onde está o balconista?
― Foi buscar as chaves.
Mantive o abraço até o balconista voltar, chaves em mãos, fomos para o quarto. Um quarto simples, como esperado, a cômoda de madeira antiga próxima à cama de casal, lençóis amarelados e mal arrumados. Uma pequena geladeira com cerveja, refrigerante, água e alguns doces ao lado da porta e um pequeno sofá puído e uma televisão antiga estavam a um canto. Uma segunda porta levava a um banheiro apertado, mas limpo. Sorri para ela. Entramos.
― Parece até que estou em casa ― comentei.
Ela riu e jogou as mochilas ao lado da porta. Eu fui até a cama e tirei meus tênis, colocando-os embaixo, tirei a camisa molhada e larguei no chão, apanhei um dos travesseiros e me joguei no sofá. Os óculos postos no chão, esfreguei os olhos com o antebraço.
― Você deveria tomar um banho, Jack, vai empestear o quarto com esse cheiro de cachorro molhado.
― Vai você primeiro, fada ― respondi ― Eu já deitei, preciso de alguma força pra levantar agora. Além do mais, sua mãe me mata se você ficar doente.
Ela proferiu algumas palavras sobre meu descaso comigo mesmo, mas eu estava cansado demais para ouvi-la. Ela passou para o banheiro e, pouco depois, ouvi o chuveiro ligado. Levantei-me rapidamente do sofá e corri para minha mochila. Apanhei o maço de cigarros que tinha guardado e fui até a pequena janela. Isadora não gostava que eu fumasse, então o fazia quando ela não estava por perto. Atento ao som do chuveiro, acendi um cigarro e traguei-o. A nicotina correndo pelo meu sangue e a fumaça preenchendo meus pulmões, apenas para, instantes depois, ser expelida por minha boca enquanto eu observava a chuva cair.
Através da escuridão, através da chuva, através da fumaça que eu expelia, eu pude ver alguns vultos. Vultos negros, vultos enevoados, vultos rápidos, vultos e vultos. Sacudi a cabeça, minha mente ainda estava presa no último caso, mas eles pareciam reais o suficiente para não ser apenas uma ilusão de minha mente partida. Patas. Asas. Presas. Correndo. Voando. Rosnando.
O som do chuveiro parou. Isadora saiu do banheiro com a toalha enrolada no cabelo e roupas secas. Ela olhou para o sofá e não me viu, eu ainda estava na janela, distraído, o cigarro ainda aceso queimava entre meus dedos.
― Já fumando, Jack? ― ela ralhou comigo ― Você sabe que isso ainda vai te matar.
Silêncio. Meus olhos ainda estavam fixos para o lado de fora.
― Jack? ― ela chamou.
― Fada ― olhei para ela ― Quanto tempo faz que terminamos o último caso?
― Algumas horas. Por quê? ― ela perguntou ― Acha que tem algo por aqui?
Isadora tirou a toalha da cabeça, liberando suas madeixas negras, ela me olhava preocupada. Ela podia ser uma garota de quinze anos, mas às vezes me parecia mais responsável do que eu ― o que já não era muito difícil ―, ela sempre estava preocupada comigo. Era uma inversão interessante, o mentor cuidava da aluna ou era o contrário? Tínhamos uma relação curiosa, mesmo com os poucos meses em que nos conhecemos.
― Eu não sei, mas eu vou descobrir ― respondi.
― Certo, mas agora termine isso daí ― ela indicou meu cigarro ― e vá logo para o banho. Eu vou dormir.
― Pode deixar, fada ― sorri para ela.

II
O dia amanheceu e o cheiro de terra molhada preenchia as narinas de todos. Eu já estava levantado desde cedo. Calça jeans e camiseta, descalço. Estava treinando meu corpo quando o serviço de quarto chegou, trazendo-nos o café da manhã. Agradeci a camareira e dei-lhe uma nota de cinco. Ela agradeceu e eu fechei a porta. Olhei para a refeição, era simples, mas tinha café, já me bastava. Acordei Isadora, ela foi ao banheiro enquanto eu me servia de uma fatia de pão com manteiga.
― Você ainda está preocupado com o que sentiu ontem, não é? ― ela perguntou enquanto se sentava ao meu lado no sofá.
― Eu não senti nada. Eu vi. ― corrigi-a.
Depois disso ela não disse mais nada, comemos em silêncio e eu apanhei minha jaqueta que deixei no banheiro para secar, ainda estava gelada da chuva, mas dava para usar. Me certifiquei de que não tivéssemos esquecido nada ali e saímos.
Enquanto acertava a conta perguntei ao atendente da noite anterior sobre a cidade mais próxima. Ele me indicou a direção. Agradeci e, com Isadora, fui pegar minha motocicleta. Com a barra da camisa limpei os retrovisores úmidos, sentei-me e liguei-a. Isadora sentou-se na garupa e me abraçou, a mochila em suas costas. Antes de sairmos perguntei:
― Acha que está pronta para tentar uma investigação às cegas?
― Você acha que estou?
― O Lobo caçador e a Fada do outono juntos? Acho que vai ser divertido.
Ela riu e, enfim, saímos do hotel. A direção? A cidade indicada pelo atendente, à mesma direção dos vultos da noite anterior. Podia ser minha imaginação, mas eu sentia que valia a pena investigar e se a direção fosse a mesma de nosso destino original, não faria mal um pequeno desvio.
A estrada estava vazia como a noite, mas também ainda estavam molhadas e alguns pontos eram difíceis de passar, isso se você fosse um iniciante nas estradas, o que eu, obviamente, não era. Cortando o vento em uma única direção no asfalto, em um veículo de metal sem qualquer forma de proteção? Eu estava mais em casa do que em meu lar. Ninguém poderia tirar o sorriso do meu rosto, nem mesmo se tentassem.
A distância do hotel para a cidade não era grande coisa, em pouco mais de uma hora nós já estávamos na cidade, paramos em uma lanchonete para tomar alguma coisa antes de qualquer coisa. Eu peguei um café e Isadora tomou um suco de frutas, comprei para nós alguns salgados e nos sentamos próximos à saída da pequena cantina.
― O que se faz quando se chega a uma cidade desconhecida e se está caçando? ― perguntei ― Qual a primeira coisa que fazemos?
― Buscamos informações.
― Exato ― sorri ― e, na minha experiência, os melhores lugares para se procurar por esse tipo de informação são os bares. Quanto mais underground o bar, mais fácil de saber de alguma coisa. Sabe por quê?
― Não.
― É um raciocínio bem simples. Pessoas simples tendem a procurar os vícios quando suas realidades são questionadas de maneira que eles não possam rebater. Os vícios mais comuns são bebidas e cigarros, um bar tem ambos.
― Parece mesmo simples ― ela disse ― como fazemos isso? Como você atua?
― Eu sou... Trapaceiro ― meu sorriso se alargou ― Eu já sou acostumado com bares, mas meu olfato ainda é algo com que eu confio bastante. Eu posso farejar anomalias. E já tem algum tempo que eu aprendi a farejar gente que se envolveu com elas.
― Você é realmente um cão de caça, não é?
― Acho que sou ― rimos juntos ― vamos terminar isso aqui e vou atrás de um bar legal.

III
Sujeira. Imundice. Suor e urina exalavam dali. Uma mesa de sinuca, alguns jovens jogavam nela, um pequeno bolo de dinheiro ao lado de uma garota bonita, provavelmente ela também fazia parte da aposta. Uma televisão ligada no canal de esportes, alguns velhos discutiam a partida de futebol. Um bar típico de cidade pequena com sua sujeira habitual.
Isadora não estava à vontade, ela não era o tipo de garota que frequentava esses lugares, ao contrário de mim, que já era quase uma lenda viva do bar de São Miguel, o Princesa, de tanto que já arrumei confusão por lá. Os olhares caiam sobre ela, mas ninguém se atreveu a comentar coisa alguma, ao menos não descaradamente, ela estava comigo e isso bastava para mantê-los quietos.
Fui direto ao balcão, pedi uma cerveja e me apoiei com os cotovelos nele enquanto bebia. Isadora me olhava curiosa, enquanto eu fingia não perceber, os óculos escuros escondendo meus olhos. Eu farejava o lugar, mas parecia não ter nada ali que não tivesse que estar, nada de incomum.
Eu estava para desistir quando finalmente consegui farejar alguma coisa. Um homem, velho, de pelos brancos escapando pela abertura da camisa e botas rotas, se aproximava do balcão também e pedia uma dose de uísque. Ele não fazia questão de se esconder, provavelmente nem sabia o odor que exalava, estava preocupado, como alguém que viu algo que não se pode compreender. Algo que não se pode explicar. Cutuquei Isadora e indiquei o homem. Tirei da carteira mais algum dinheiro e me aproximei dele:
― Vai querer algo mais?
Ele me olhou preocupado. Ele parecia me avaliar, ofereci-lhe meu sorriso de desgarrado. É preciso ser um deslocado para reconhecer o outro. Ele sorriu nervoso e aceitou mais uma dose de uísque, comprei duas. Brindamos e viramos as doses. Comprei mais uma cerveja e indiquei uma mesa. Isadora nos acompanhou em silêncio. Somente quando nos sentamos ele se deu conta de que ela estava ali.
― Não se preocupe ― disse-lhe ― ela está comigo.
― Não me preocupar? ― ele perguntou ― Essa cidade está fodida!
― O que quer dizer?
― Que tem coisa do diabo aqui! ― ele se inclinou para perto de mim ― Vai achar que eu sou louco, mas tem coisa errada aqui.
― Por que não tenta a sorte? Tenho a mente aberta.
― Olha garoto, as coisas aqui estão esquisitas. Não é coisa de deus.
Servi a ele um pouco da cerveja. Ele tomou um gole, a espuma prendendo-se em seu bigode espesso. Ele respirou fundo e começou:
― Escuta, eu sou capataz... Não, eu era. Eu era capataz de uma construção que estão fazendo perto da saída da cidade, eu não volto mais lá. Não com aquilo lá.
― O que é aquilo? ― perguntei, tomando do meu próprio copo.
― Fantasmas ― ele respondeu teatralmente.
Silêncio.
― Não está assustado? ― ele perguntou surpreso ― isso me fez tremer como criança!
― Como eu disse, tenho a mente aberta ― respondi ― Como era?
― Eram... Vários. Animais ― ele respondeu.
― Animais?
― Cães, corvos, gatos, animais mesmo ― ele tomou mais um gole da cerveja ― Sabe, não era gente. Eram animais. Pareciam estar protegendo um lugar, mas como se fossem mandados, cães de guarda.
― Protegendo o que?
― Que eu saiba, nada. Não tem nada lá, só a construção vazia. Não tem mais ninguém lá, os outros também já saíram da cidade. Eu só não fiz isso por que não tenho mais para onde ir, nem por que ir. Já vivi demais para ter outro lugar para ir.
― Nós sempre temos para onde ir ― Isadora falou ― Só o que precisamos é de vontade.
― Olha garotinha, isso só é verdade se você ainda tem o que viver. Velhos como eu, sem família, não tem por que fugir da morte.
― Acha isso mesmo? ― ela perguntou
― Chega, fada, ele tem razão.
― Mas Jack!
― Escute seu irmão, guria.
Ela se calou, eu me levantei. Bebi o que restava em meu copo. Saí dali com Isadora em meu encalço. O homem não entendeu o que estava acontecendo, mas eu não o dei mais atenção, já havia conseguido o que precisava.
Já na Alma do Deserto virei-me pra minha aprendiza e falei:
― Temos um caso.
― É, mas eu não sabia que animais podiam ser fantasmas.
― Por que não? Eles estavam vivos, tinham uma alma para continuar aqui. Uma lembrança. É assim que eles nascem.
― Se você está dizendo...
― Sobe aí, eu quero ver essa construção de perto.

IV
Só em estar ali dava pra sentir a perturbação. O nível espectral não era normal mesmo. Até a Isadora que ainda estava aprendendo pode sentir. Uma construção abandonada, cercada por arame farpado e placas de metal em pé. Máquinas desativadas, montes de pedra e areia, a armação de um prédio abandonada sem qualquer capricho. Saíram dali às pressas.
― Queria saber o que trouxe eles até aqui... ― comentei.
Me abaixei no chão e apanhei uma pedra qualquer, joguei-a para frente e fechei meus olhos. Meus sentidos me alertavam sobre tudo que poderia acontecer ali, Isadora ao meu lado não entendia o que eu estava fazendo, eu nunca havia lhe dito o que eu fazia exatamente.
Eu estava pedindo por ajuda. Pedindo por um sinal. Eu precisava de alguma indicação do que poderia ser a causa de esses animálias estarem ali. Por que animais espectrais estariam ali? Um cemitério de animais?
― Eu acho que eu sei o que aconteceu aqui, Jack.
― O que foi?
― Ele.
Abri meus olhos, ela apontava para um homem sentado no meio da construção. Roupas surradas, mas mantinha um ar de sobriedade e elegância. Olhos fechados. A sombra da construção o protegia do sol. Isadora olhava para ele com um olhar de raiva, eu pude perceber logo o motivo. Correntes.
― Está com a faca que eu te dei?
― O tempo todo ― ela tirou da cintura uma faca de metal brilhante, prata.
Os olhos dela não se desviavam das correntes na mão dele. Correntes. Correntes e mais correntes. Metal polido, metal enferrujado, metal, ferro, cobre, corroído. Finas e grossas.
Coisas que a Isadora e eu temos em comum? Liberdade. Procuramos e protegemos a liberdade, correntes representam o aprisionamento, a negação da liberdade. Não são muito diferentes de jaulas.
― Eu sei o que é aquele filho da puta ― eu estava deixando a raiva me dominar. Eu não gostava mesmo do que era aquele desgraçado, odiava. ― Um maldito cadáver.
― Vampiro? Assim? ― ela perguntou surpresa ― Mas está de dia.
― Você acredita demais nisso da luz, fada. ― comentei ― pra uma fada do outono, você se perde demais nos detalhes das histórias. Na paixão das histórias.
― Histórias costumam ter verdade, Jack, você me ensinou isso.
― Vampiros não tem apenas uma história ― lembrei-a ― Há histórias onde vampiros podem fazer certas coisas que outros não podem. Tipos diferentes. Deve ser um maldito cadáver-hippie. Emergido com a terra, ele pode ficar na sombra durante o dia. Alguns até caminham no sol.
Apanhei a minha própria faca. Passei de leve o dedo sobre o relevo no entalhe da lâmina, o sobrenome Lunewalker. Meu sobrenome. Ergui meu corpo e respirei fundo, ajeitei os óculos e direcionei meus passos para o cadáver.
Nem bem dei dois passos e senti um puxão em meu pé. Uma cobra esfumaçada se torcia nele. Chutei-a para longe. Se pode me tocar, eu também posso. E se posso tocar, eu posso matar. Outra vez.
Animais enevoados apareciam entre todas as fendas do chão, de todos os esconderijos possíveis. Cães e gatos, cobras e corvos. Facas em punho, tínhamos que abrir caminho entre todos eles para chegar ao vampiro. Não entendia como eles poderiam estar protegendo algo tão repulsivo quanto aquele bosta.
Enquanto lutávamos com fantasmas, o vampiro sequer se movera, nós tivemos mesmo problemas para alcança-lo, eu estava cansado quando consegui toca-lo. Isadora ainda estava com problemas com um gato crescido que a atacava, eu arremessei minha faca contra o felino espectral e ela apenas o atravessou. Era diferente dos outros. Nem mesmo armas feitas para lidar com essas coisas poderiam atingi-la.
Desfiz-me do cadáver e me dirigi até ela, mas não foi necessário andar muito. O felino foi derrubado por outro fantasma. Surpreso com aquilo acabei atingido pelas correntes do vampiro que aproveitou minha distração para se manifestar. As correntes pareciam vivas, enrolando-se em meu corpo e se contraindo, tentando me esmagar. Chutei-o, tirando-o de sua posição inicial.
Olhei rapidamente para o lado. Isadora estava no chão, ela tinha feito algo. O felino com que ela estava ocupada agora enfrentava um cachorro maior do que ele. Um cachorro que salivava fumaça e se prostrara entre ela e o gato.
O julgamento do outono.
Ela estava longe, mas sorria. O cachorro agora a ajudava, enfrentando seu inimigo em seu lugar. Sorri e voltei-me para o cadáver.
― Seu chupador de sangue, eu já não gostava de você antes, agora menos ainda ― eu disse ― Seu merda, ninguém obriga ninguém a fazer coisa alguma!
Era tão óbvio. Tão simples. Aquele merda era um maldito manipulador. Uma habilidade difícil de encontrar em um membro, mas renegados a tinham como forma de criar seus castelos. Guardas. Ele escravizou os animais para proteger seu território. Isso não ficaria barato, não se eu pudesse fazer algo. E eu podia.
Nenhuma palavra foi dita por ele, apenas um sorriso largo, exibindo suas presas alongadas, estampado em seu rosto. Um psicopata que merecia a morte. Merecia ser destruído.
Ele puxou as correntes, levando-me para perto dele. Belo erro. Junto a ele, eu pude acerta-lo com minha cabeça. As correntes afrouxaram e me livrei delas. Meus punhos estavam livres, agarrei-o e ergui acima de minha cabeça. Joguei-o longe, contra uma das vigas, que tremeu com o impacto. Corri até ele, jogando meu corpo sobre o dele. Cotovelo contra o pescoço.
Ele ganiu quando me derrubei sobre ele, tentou me morder, mas não dei tempo algum para ele. Pressionando e empurrando contra o chão. Eu ia arrancar aquela cabeça. Ele não tinha como escapar.
Exceto por uma coisa. Aquele maldito gato.
Vindo em direção a seu mestre, o gato fantasma se jogou contra mim, as correntes rompidas, exceto por uma. A corrente que se dirigiu até o pescoço do animal. O cadáver levantou, limpando seus ombros da poeira e sorrindo.
― Pega ― ele disse.
A corrente solta, o gato veio em minha direção. O cão que ajudou Isadora saltou por cima de mim antes do rival me alcançar. Algo estava em sua boca. Ele o cortou de frente a frente. Rasgando a névoa que o formava. Era minha faca entre seus dentes.
Ela caiu no chão. O cão rosnou frente ao que caia próximo a ele. Desfazendo-se em bruma, o felino estava livre. Restava apenas um. O morto-vivo que não teria chance de fugir. Era óbvio, alguém que precisa mandar outros em seu lugar não tem força própria para se safar.
Dois passos. Apanhei a faca. Dois passos. Corri até ele e novamente o derrubei. Seu sorriso apagado, apenas um lampejo de que era o fim. Sua cabeça separou-se do corpo quando a lâmina passou por seu pescoço. Nenhuma gota de sangue. Ele estava seco por dentro.
Arfando, arrastei o corpo para longe das sombras e o deixei no sol. Pouco a pouco ele se desfazia em cinzas. Fui até Isadora, ela estava bem. Ela sorria para mim. Eu sorria de volta.
V
― E então, foi isso? ― meu padrinho me perguntou.
Estávamos de volta a São Miguel. Estávamos em minha casa. Isadora sentada ao meu lado no sofá, ela estava com um vestido que deixava suas costas nuas. As cicatrizes em suas costas expostas. Eu sempre as olhava e sentia raiva. Raiva de mim por não ter finalizado um trabalho. Um trabalho que eu ainda iria finalizar.
O terceiro dia do ano começava, estávamos conversando sobre o que estivemos fazendo longe da cidade. John sorria para nós. Ele estava orgulhoso, mesmo que não dissesse. O equilíbrio devia ser mantido, era o que ele costumava dizer. Foi o que fizemos.
― E ele? ― John indicou o lado da mesa.
Olhei. Encarando-nos parado estava o mesmo cão que nos ajudou na luta com o vampiro. Ele parecia tranquilo. Eu estava curioso, o julgamento do outono já deveria ter cessado. Não era algo eterno, ele já deveria estar livre.
― Fada, ele... Não vai seguir? Digo, quando você realiza aquilo em um espírito, ele não recebe o fim que merece?
― Bem, já passou em muito do tempo limite. Vai ver o fim dele ainda não chegou. Ou o que ele merece é ficar. Ele parece gostar de você ― ela sorriu para o cachorro.
― Eu gosto dele. ― John comentou, levando a xícara de café a boca ― Mas eu acho que, se ele vai ficar, ele precisa de um nome.
― Led ― eu respondi de prontidão.
― Led será, então ― John concordou. ― Aliás, feliz aniversário, moleque.
― Ah, verdade. Com tudo isso, eu me esqueci do meu aniversário ― sorri.
― Nós não ― Isadora levantou e abriu a geladeira.
Ela levou um pequeno bolo para a mesa. Cortou um pedaço e perguntou:
― O que você vai pedir?
Pensei por um instante, olhando-a.
― Quero conseguir trazer suas asas de volta. Eu vou fazer isso. É uma promessa lunar, feita por Jack Lunewalker.
Isadora me abraçou, sorrindo.

― Esse é um bom pedido ― John sorriu ― Um presente para alguém com quem você se importa. Isso é bonito.

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