11 de junho de 2012

Conto – Uma noite comum para os incomuns.

            Enquanto uma leve garoa caia sobre o jovem, seu cabelo comprido esvoaçava ao forte vento que tentava, inutilmente, mudar seu curso, que caminhava sem destino, com as mãos em seus bolsos – manuseando o isqueiro que havia em um deles – com uma expressão séria ele andava sem saber para onde seus pés o levavam. Quando dera por si e olhara a sua volta, reparara em uma casa.
            Ele piscara, não acreditando em que seus olhos, negro-acinzentados, o mostravam. A primeira vista não aparentava haver nada de surpreendente, era de uma arquitetura simples – com janelas e porta enferrujadas e um pequeno quintal malcuidado –, quase rustica. Nada que chamasse a atenção de alguém, a casa parecia ter sido feita exatamente para não ser notada, devido sua localização – em meio a outras, há muito, abandonadas. Mas para ele, em geral, as coisas tinham um motivo para chamar à atenção. Ele não sabia naquele momento, mas aquela casa havia de ter-lhe atraído o olhar por um motivo em particular, que logo lhe seria revelado.
            Ele permaneceu por vários minutos encarando a casa, como se esperasse que alguém fosse sair, antes de seguir seu caminho.
            Caminho que o levou a uma grande feira. Talvez não tão grande quanto parecesse à primeira vista, mas relativamente grande. O intoxicante cheiro de comida era inconstante e pessoas de todos os tipos estavam por lá, desde muito jovens a muito velhos. Artistas apresentavam seus números paralelamente e em grande harmonia. Os sons de diversas melodias misturavam-se as vozes dos passantes, tornando impossível distinguir um som do outro. Parecia tudo estar interligado de alguma forma.
            A chuva – que ali parecia afinar – não incomodava as pessoas. Talvez o bom-humor inibisse qualquer outra sensação, ele não sabia. Não sentia nada. Estava indiferente aquilo tudo. Ele vagava por entre as pessoas procurando por algo que o interessasse. O carma de quem procura algo é que no fim, esse alguém acaba encontrando.
            Uma aglomeração estava se formando e, entediado, ele fora tentar descobrir o que acontecia. No olho da confusão, havia duas pessoas discutindo aos berros, nos poucos minutos que ele perdera ali constatou que era uma simples briga de casal.
            – Hunf – resmungou enquanto tentava contornar a confusão. – Não é assunto meu e muito menos deles...
            Mesmo a distancia ainda era possível ouvir os gritos do casal, aquilo era tedioso. Por que as pessoas tinham que ser tão desagradáveis? Por esse motivo ele deixou-se guiar até o cerco dos animais. Cães. Seus favoritos em todos os seres pluricelulares.
            – Oi amigo – dizia ele, acariciando a cabeça um filhote de labrador. – Eu sei que você quer sair daqui. As pessoas não entendem o que é... Precisar de espaço para esticar as patas.
            – Eu acho que você também não. – Ouviu uma voz feminina dizer próximo a si.
            – Não fale do que não sabe. – Disse ele, erguendo-se, sem olhar para a garota. – Entendo muito mais os cães do que pode imaginar... Na verdade, sinto-me mais a vontade com eles do que com humanos.
            – É falta de educação falar com alguém sem olhar esse alguém nos olhos – resmungou ela forçando-o a encará-la. – Ainda mais se esse alguém é uma garota.
            Era uma garota estranha, era o que sentia sobre ela. Estatura baixa, seu cabelo dourado não era muito longo, ligeiramente menor que o dele, a leve maquiagem em tom azulado ressaltava seus olhos castanhos. Possuía uma linha firme de expressão o que lhe proporcionava um ar durão, acentuado com um pirulito em sua boca. Ela chamava-lhe a atenção.
            – Quem pensa que é para me dizer o que fazer? Minha mãe? – zombou ele, dando-lhe as costas.
            – Ei! – ela gritara. Por que ela fez isso? Era incomodante...
            – Pode, por favor, não gritar? – ainda de costas ele pediu, era estranho ele usar de boas maneiras com alguém. – Isso machuca.
            – Machuca...? – ela estava confusa. – Como assim?
            – Coisa minha... Esquece.
            – Não! – ela tornara a gritar.
            – Eu já pedi pra não gritar garota! – ele voltara-se para ela com violência. Visivelmente irritado, havia perdido o ar sereno que até então mantinha, sua mão direita pairava a meio caminho do rosto dela.
            – Não briga comigo! – ela gritou novamente, não aparentava ter percebido o possível soco que levaria.
            Isso o confundira. Há poucos instantes ela ostentava um ar rebelde, um ar de teimosia, mas agora parecia indefesa. Não apenas isso, ela parecia alguém a quem ELE deveria proteger... Muito estranho.
            – Er... – gaguejou, deixando seu braço cair ao seu lado.
            – O que vai fazer hein?! – replicou ela, voltando a sua postura anterior. Era realmente uma garota estranha.
            – Vem comigo – disse enquanto recolocava as mãos nos bolsos e tornava a andar.
            – Para onde vamos? – perguntara quando o alcançara.
            – Apenas me siga... – ele dera de ombros e continuou a andar.
            Ele permanecera absorto em seus próprios pensamentos o caminho todo. Não sabia por que estava dando atenção a essa garota, mas sabia que deveria. Era o que seu instinto lhe dizia para fazer.
            – O que você bebe? – perguntara, por fim, ao chegarem a uma pequena barraca em um canto da feira, uma barraca simples, mas armada em um ponto onde era difícil de ser notada. Havia pouca iluminação, deixando-a mais oculta do que já, naturalmente, era.
            – Nada com álcool
            – Por quê? Fraca demais para a bebida? – zombara.
            – Não, apenas não bebo com quem eu não conheço.
            – Certo...
            – E você, não bebe? – ela perguntara curiosa ao ouvi-lo pedir dois sucos de laranja.
            – Não.
            – Fraco demais para bebida? – ela sorria de forma provocante.
            – Não bebo por motivos próprios... Motivos que não dizem respeito a você.
            Quando chegou, a garota começara a adoçar a bebida. Parecia não haver limite, pois ela não parava de encher o copo, colherada por colherada, com açúcar. Ela só parou quando havia uma camada de mais de três dedos de açúcar no copo.
            – Se era pra você morrer por diabetes, não morre mais!
            – Eu gosto de açúcar! – ela replicou, com um sorriso infantil no rosto.
            – Estou vendo... – disse ele, com expressão de espanto.
            Ele a olhava, interessado, sentia que já havia a visto em algum lugar.
            – Eu conheço você? – ele desistira de vasculhar, em busca da garota, sua memoria quando ela terminara seu suco.
            – Acho que de vista, todos os passantes acabaram me conhecendo. – ela brincava com o açúcar que havia no fundo de seu copo. – Eu estava ali – ela apontara para onde havia a confusão que ele vira mais cedo – discutindo com o meu “ex-namorado”.
            – Era você então? – ele sorrira – Bem que eu já havia ouvido seus gritos.
            – Ei!

            A noite aprofundara-se e os dois ficaram juntos andando pela feira.
            Descobriram ser bastante parecidos, embora completos opostos. Ele preferia o sal enquanto ela açúcar. Ele gostava de cães e ela gatos. Ele amava o fogo e ela a água. Estavam absortos conversando que não reparam que já era tarde e que ela precisava ir para casa.
            – Me levaria até em casa?
            – Ninguém mais por aqui me instiga a uma conversa decente. Então, sim... Eu te levo. – ele sorria fracamente.
            Ela o guiava, afinal, ele não sabia onde era sua casa. Apesar da maneira como se conheceram, ela o fazia sorrir. Era engraçado vê-la atravessar as ruas enquanto os carros seguiam. Ela o puxava pela mão para que corresse com ela. Coisa que ele, por bom-senso não fazia. Não foram poucas às vezes em que ele a conteve, para evitar que ela fosse atingida por algum carro. Nessas – muitas – vezes, ela parava em meio à rua e sentava-se e lá permanecia, parecendo uma criança emburrada.
            Quando finalmente chegaram o caminho, para ele, parecia muito mais curto se ela não tivesse o feito tantas vezes. Ao olhar a casa ele percebera onde estavam. Era a casa que mais cedo ele havia notado. Não podia ser obra do acaso, era coincidência demais.
            – Você mora aqui?
            – Moro, por quê? – indagou curiosa.
            – Nada demais... – ele não parava de encarar a casa, como antes ela parecia convidá-lo a entrar. Como se houvesse algo a mais naquele lugar, algo que ele não sabia o que era.
            – Bem, boa noite... – ela subira na ponta de seus pés para beija-lo em seu rosto.
            – Boa noite... Qual o seu nome? Quer dizer, passamos a noite andando juntos e nem sei como se chama. – Ele saíra de seu transe e reparara nesse fato. Um leve deslize de sua parte, não achava que deveria saber o nome de todos, mas com ela era diferente... Por algum motivo.
            – Agatha, e o seu?
            – Mas se preferir pode chamar-me de Jack – respondera voltando seu olhar da casa para ela. – Boa noite... Agatha.
            – Boa noite Jack.
            – Boa... – ele beijara sua testa e deixou-a parada em frente à própria casa.
            Com as mãos nos bolsos, seguia pelas ruas escuras da cidade... A noite tinha sido estranha, até mesmo para os padrões dele.



Esse é o conto que origina o livro em que estou trabalhando. Foi visto e revisto diversas vezes, mas apenas agora estou sentindo que as coisas estão andando.

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