I
Outubro de 2013
As chuvas jamais foram um problema em São Miguel. Vinham
sempre na mesma época, auxiliando a plantação de café local. Naquela noite meu
único problema com a chuva foi o fato de não conseguir manter um cigarro aceso
fora de casa.
Não era problema fumar em casa, meu padrinho sempre fumava,
mas eu gostava de fumar fora. De sair e observar o céu noturno. Com tantas
nuvens ali não era possível qualquer observação. Coloquei uma jaqueta e fui até
minha motocicleta, a Alma do Deserto.
Liguei a garota e saí sem um destino certo. Estranhamente eu
não tinha vontade de ir ao bar, a chuva provavelmente havia espantado a
clientela e não haveria qualquer diversão por lá.
Passei em frente à igreja, no centro da cidade, parei um
pouco. Fiquei observando a estátua do arcanjo Miguel e pensava no que haveria
para se fazer naquela noite. Harley estava trabalhando e, por mais que eu fosse
fã de jogar cartas, eu não queria ir até a casa de jogos onde ela trabalhava ―
até por que nós não estávamos muito bem, mais uma briga em nossa relação.
Enquanto estava ali, meu celular tocou. Gustavo Martins.
O que um membro d’O Bando da Lua estava querendo fora da
época da reunião mensal? Não sei, mas eu atendi do mesmo jeito.
― Moony.
― Hey Jack, o que está fazendo agora? ― ele perguntou.
― Estou ótimo também, Moony, qual o lance?
― Dê uma passada aqui. Acho que temos um caso.
― Apanhe a cerveja, Moony ― sorri, desligando o celular e
ligando a motocicleta outra vez.
Antes de sair, olhei mais uma vez a estátua ali parada. A
chuva escorria por toda ela, parecia até mesmo que Miguel chorava por algum
motivo, mas isso foi apenas uma divagação pessoal. O que a falta de álcool não
faz, não é?
II
O apartamento do Moony era o reflexo dele mesmo como pessoa.
A organização era impecável, muito ao contrário do meu quarto, que era a
representação física do que era o Caos.
Os móveis eram bem cuidados, os livros estavam catalogados
por ordem alfabética, até mesmo as almofadas do sofá estavam completamente
alinhadas. Gustavo tinha até mesmo improvisado um cinzeiro, disposto na mesa de
centro, feito com o fundo de uma garrafa de refrigerante.
Ele me fez tirar os tênis antes de entrar, o cara era
mentalmente perturbado com a ordem em sua casa. Ele me estendeu uma lata de
cerveja no momento em que abriu a porta, o que me fez sorrir.
― Moony ― cumprimentei
― Jack ― ele estendeu a mão, apertei-a.
Sentei em um dos sofás, o mais próximo possível do cinzeiro,
tirei um cigarro do bolso e o acendi. Ele ligou um ventilador, virado para o
lado de fora da janela ― era um lugar muito, muito, limpo. Magos e suas manias.
― Então, ― comecei, após o primeiro trago ― qual a urgência
desse caso? Não é nem uma reunião formal do grupo.
― Eu sei, desculpe se atrapalhei qualquer plano seu ― ele
disse ― Sei que está namorando agora e...
― Ah, Moony, corta essa. Você sabe muito bem que a Harley e
eu estamos brigados. ― respondi, soprando a fumaça em sua direção, que ele
tentou espantar abanando a mão em frente ao rosto ― Diz aí.
― O Arcano.
Olhei para ele, batendo as cinzas no cinzeiro, tirei meus
óculos escuros. Aquela organização. O motivo de todos nós existirmos como
conjunto.
― O que houve dessa vez?
― Há uma família, o professor os conhece, uma mãe e uma
filha. ― ele disse ― São do povo feérico.
― Não sabia que o Arcano se interessava por fadas. Não
parece coisa deles.
― Você sabe que almas são poderosas, mas almas de anomalias
tendem a ser mais poderosas do que as humanas. Há muito mais energia do que as
nossas.
― Certo, entendi. Fadas são feitas de pura magia, a alma
delas é ligada unicamente com o mana. ― comentei. ― Então? Mataram elas e
pegaram suas almas?
― Não.
― Não?
― Não. ― repetiu ― A
garota, a filha, não é uma fada. Mestiça. O pai dela era um caçador, amigo do
professor, da época antes da Ordem.
Meu padrinho nunca falava de seu tempo antes da Ordem, a
organização que ele fundou, mas todos sabiam que ele havia sido membro de uma
outra organização de mesmo padrão. Estávamos enrascados, eu sabia disso.
― Então, a garota é especial. Mestiços são difíceis de
encontrar ― comentei.
― É, casos muito raros. Ainda mais entre fadas e humanos. ―
ele disse ― Não são como você, não são um povo feito para lutas, mas são um
povo de poder único. Existem pela natureza.
― Certo, vamos me deixar de lado por um instante. O que
fizeram com a garota?
― Sequestro, oras. ― ele respondeu ― Estão mantendo ela em
cativeiro, pelo que eu soube, estão tentando extrair dela o potencial para
gerar mais como ela.
― O que seria um problema. Poder demais nas mãos erradas.
― É, você entendeu.
― Então, como se sente com o que vamos fazer?
― Perdão?
― Oras, Moony, é uma caça às bruxas. Você é um bruxo também.
― sorri para ele, apagando o cigarro ― Não é meio irônico?
― Eu sou um mago psíquico, Jack, não sou um demonólogo como
elas.
― Você sabe que isso é apenas uma teoria, não sabe?
― Eu sei, mas é o mais aceito entre os membros da Ordem. Ao
menos os que estão estudando sobre a Arte.
― Vocês magos vivem querendo nos deixar mal.
― Não é verdade, caçadores são importantes também!
― Só estou pegando no seu pé, Moony. ― levantei ― Quando
partimos?
― Imediatamente.
― Você sabe onde estão? Como? O Oráculo outra vez?
― Kobra.
― Ah, aquele cara... Sabe que não confio muito nele, não é?
Não parece ser do tipo que joga no time
dos mocinhos.
― Ele é útil. ― ele respondeu ― E se quer saber, nem o
Oráculo é um contato muito confiável.
― Eu sei, toda vez que você fala com aquele mendigo você
fica fraco e precisa de uns dois dias pra recarregar as baterias ― comentei ―
Ainda me surpreendo em lembrar que você falou com ele poucas horas antes de
enfrentarmos aquele dragão.
― Vai ver meu corpo não é tão fraco quanto aparente ser para
você, Caçador.
― Você quem diz, Mago
Psíquico.
― Só mais uma coisa...
― Atire.
― Não acha que o Frank vai ficar sentido com nossa atuação
sem ele?
― Você deposita pouca fé no Frankie, sabia? Ele nem está na
cidade, saiu para resolver alguma coisa da ordem dele.
― Espero que ele não esteja com problemas.
― Você se preocupa demais.
― Sou um bom amigo.
― Eu também sou, por isso sei que ele está bem. ― retruquei
― provavelmente está agora mesmo enfiado na cama com alguma garçonete que
encontrou onde quer que ele esteja.
Gustavo me olhou, sério. Recoloquei meus óculos. O silêncio
foi quebrado com nossas risadas. Era quase certo o que Frank estaria fazendo
naquele momento, isso se ele já tivesse terminado o que havia ido fazer.
III
A chuva diminuiu bastante no pouco tempo que estive no
apartamento do Moony, me pergunto se ele teria alguma influência nisso, mas
como um mago da mente poderia influenciar a natureza? Até onde sei, ele tinha
poder apenas, bem, sobre a mente! Mas
bem, cavalo dado não se olha os dentes...
Moony estava no carro dele e eu o seguia de perto em minha
motocicleta. O que há de novo desde nossa última atuação juntos? Bem, Moony
aprendeu um truque ou dois com os membros da Ordem que estudavam a mente. Um elo mental, melhor do que walkie-talkies ou celulares.
“Então, como vai o
novo livro?”, perguntei.
“Ahn? Ah, eu esqueci
por um momento que havia feito esse elo quando saímos de casa... O livro está
andando bem. Estou tendo alguns problemas com alguns personagens, mas está tudo
indo bem”.
“H-eh, avise se
precisar de um pouco da minha poesia”.
“Meu livro não tem
espaço para nada que lembre Bukowski, Jack! Eu tenho minhas próprias
influências!”
“Só sugeri, relaxa”.
Ele fez uma curva brusca. Eu tive que forçar o guidão por
instinto para continuar seguindo ele.
“Aliás, esse negócio
de elo mental... Não é arriscado?”
“Não há como
interceptar e...”
“Não, não por isso. Eu
quis dizer, comigo. Você sabe, minha mente é um caos”.
“Eu pensei muito sobre
isso desde que aprendi a fazer o elo, mas ainda não tive qualquer conclusão
sobre os efeitos de um elo mental em uma mente fracionada como a sua”.
“Ou seja...?”
“Eu precisava de um
teste prático para saber”.
“Claro, claro... Às
vezes você me lembra muito os Bakers, eles quem gostam de correr riscos”.
“Para evoluir é
preciso tomar certos riscos”.
“Você quem sabe, não
vou ser eu quem vai ter problemas mesmo... Dessa vez”.
Outra curva.
IV
Já fazia alguns dias que eu não ia até a parte baixa da
cidade. Não sei o que diabos o Moony queria enfiando o carro dele ali, mas o
risco era dele. Se bem que nenhum civil conseguiria levar o carro daquele mago
e seria muito difícil alguma anomalia querer andar de carro.
Parei a Alma do Deserto próxima ao carro dele.
Certifiquei-me que minha pistola estava na minha cintura, junta com a faca de
prata que eu carregava sempre comigo.
― Aqui? O Arcano anda passando por problemas no orçamento? ―
perguntei ao ver que ele encarava um prédio abandonado ― Parece o galpão onde
eu tive o primeiro contato com a Harley.
― Estou sentindo uma pontada de saudades vinda de você,
Lunewalker? ― maldito, alfinetadas assim são golpe baixo.
― Talvez, Moony, talvez ― fechei a cara, procurando por um
cigarro na jaqueta. ― Sinceramente, não sei se vamos durar por muito mais
tempo.
― Okay, Jack, vamos tricotar sobre isso depois de resolver
esse caso, será que consegue não pensar em você por algumas horas?
― É hora da caça, Mago.
Gustavo se adiantou ao prédio abandonado, próximo a porta de
entrada. Uma porta de metal enferrujado, corroído pelo tempo, parecia que já
faziam anos que ninguém mexia ali. Ele deu duas batidas na porta.
“O que esse maluco
está fazendo?” perguntei-me
“O elo ainda está
funcionando, Lunewalker”.
“É, eu sei, era pra
você ouvir”. Não era. “Então, o que
está esperando? Quer que eu derrube isso aí?”
“Já vai ver”.
Silêncio.
Silêncio.
Barulho de metal se movendo. A porta se abriu, revelando uma
boate apinhada. Magia, sempre agindo de maneira engraçada ― nesse caso,
ocultava uma boate de anomalias.
Luzes fortes e coloridas rodavam pela sala, Daft Punk tocava à um volume absurdo,
quase não havia espaço para se andar da porta até o balcão de bebidas, a única
explicação possível era que ali era mesmo uma boate feita para anomalias.
“Não se perca, Jack”.
“Eu estou tentando,
mas... Luzes, cheiros, sons... Tudo muito forte aqui, está zoando meus
sentidos”.
“Por isso é o lugar
perfeito contra você. Concentre-se na mente e deixe o exterior de lado”.
“Falar é fácil,
desgraçado, experimenta estar no meu lugar uma vez na vida, você não duraria
dez segundos”.
Era realmente complicado estar em um lugar daqueles quando
se funciona basicamente usando seus sentidos, foi preciso muita concentração
para que eu não tivesse um derrame ― principalmente quando trocaram o som por
uma batida repetitiva de algum tipo de funk.
Realmente era uma boate.
“Moony, me diz... Por
que estamos mesmo aqui? Não parece o lugar onde o Arcano estaria trabalhando”.
“Acredite, é
exatamente esse o lugar”.
“Merda... Eu vou parar
um pouco, cara. Preciso de uma bebida antes de continuar qualquer coisa”.
“Está mesmo com
problemas com isso, não é?”
“Não, imagina...”
Apoiei-me no balcão, minha cabeça girava e eu sequer tinha
consumido qualquer coisa. Não dá pra entender como as pessoas vão em lugares
como esses. Shows são uma coisa, mas boates? Boates são o pior do pior.
Pedi um bloodymary
por algum motivo. Eu não costumo beber essas coisas, meu cardápio está sempre
em cerveja, uísque, conhaque e rum. Meu drink veio logo, tomei-o de gole e olhei
pro Moony que ria de alguma coisa discretamente. Uma garota se jogou em mim,
envolvendo seus braços em meu pescoço, tentando me beijar.
Se eu estivesse solteiro, teria sido fácil demais, mas por
mais que eu estivesse brigado com minha namorada, eu ainda estava em um
relacionamento sério e monogâmico. Dureza essa vida ― como o Daniel conseguia
viver com a Lavínia? Vai ver eu nunca saberia direito o que é isso, mas de
qualquer modo, tirei a garota dos meu pescoço.
― Me beija ― ela disse.
― Nah, beija ele ― e joguei ela para cima de outro cara.
Saí dali, enquanto ela se agarrava com o cara que me
agradecia em um sinal mudo de positivo com o polegar. Já estava na hora do
Moony me dar algumas explicações.
“Sério, Moony, você
deve me odiar, não é? Pra me trazer num lugar desses...”
“Relaxe, homem. Nós
estamos quase lá”.
Eu o segui até os fundos da boate, próximo ao palco havia
uma porta que dava para os bastidores, mas não era apenas para lá que ela
levava. Havia uma escadaria, descendo e descendo através da escuridão.
“Por algum motivo está
tocando Dire Straits na minha cabeça, isso faz sentido?”
“Dire Straits? Até que
faz, você é fã, não é?”
“Meu padrinho é, eu
não sou um fã de verdade”.
“Bem, estamos aqui”.
“E onde é, exatamente,
‘aqui’?”
Gustavo indicou a porta ao fim da escadaria. Me olhou de
maneira séria, era ali que as coisas se complicariam. Saquei minha pistola e
conferi como estavam as balas, eu estava pronto.
Ele recitou algum de seus encantamentos antes de se afastar,
dando-me espaço para acertar a porta com um chute. A porta se quebrou,
revelando mais escuridão.
“Não consigo ver aqui”
ele disse “Vamos nos manter unidos pelo
elo, não é preciso falar”.
“Eu ‘tô ligado”
respondi “E bem, se houvesse algo aqui,
já teria atacado. Ou eu teria sentido o cheiro. Parece tão vazio quanto às ruas
lá fora”.
“Estranho”.
“Espera, Moon”.
Um cheiro fraco estava ali. Parecia quase inconsciente.
Apanhei meu isqueiro no bolso interno da jaqueta e o acendi. Gustavo avançou
rapidamente quando vimos o que era. Ou melhor, quem era. Uma garota. Provavelmente a garota, afinal, ele estava
tentando ajudá-la a levantar.
Guardei a pistola de volta na cintura e o ajudei com ela.
Ela estava fraca, sangue escorria de sua boca e costas. Ela era pequena, tinha
cabelos bem mais compridos do que os meus, mas tão escuros quanto. Ela estava
com um vestido azulado, estava em frangalhos. Algo foi feito com ela, estava
catatônica.
“Moony, desfaça o
link.”
“Não é um link, é um
elo”.
“Dá na mesma, só ajuda
ela a recobrar os sentidos, cara. Vai ver é preciso de mais concentração e eu
sei que isso te priva de muito do seu mana”.
― Okay, okay ― ele disse.
Gustavo tocou-a na testa, aos poucos ela recobrava a cor de
suas bochechas, recobrava o brilho nos olhos. Ela estava acordando. Tomei-a nos
braços e mandei ele ir na frente. Precisávamos sair dali sem sermos vistos, por
sorte estávamos na parte de trás da boate. O que nos deu a desculpa de usar a
porta dos fundos.
Estávamos saindo quando um dos seguranças nos chamou de
volta. Pelo cheiro, era claramente um vampiro, mas não era da cidade. Não
cheirava a Bakargy.
― O que houve aqui, camaradas? ― ele perguntou.
― Ela desmaiou, foi pisoteada. Estamos levando ela para casa
― Gustavo respondeu.
― Ahã. Escute, eu preciso saber o que aconteceu de verdade,
ou eu vou ter problemas com minha
chefe.
― Não, você não
precisa saber o que aconteceu. ― Gustavo disse, a mão se fechando do lado
do corpo, ele estava recitando seu encanto na mente, eu tinha certeza.
― É, eu não preciso saber o que aconteceu. Vão logo antes
que arrumem encrenca, ouviram?
Quando coloquei a garota deitada no banco de trás do carro
do Moony virei para ele e disse:
― Então, desde quando você é Obi-wan? ― perguntei com um
sorriso sarcástico.
― Ah, cala a boca ― ele respondeu ―, vamos, a garota precisa
de ajuda.
― Okay, eu te sigo.
Quem me dera que as coisas fossem fáceis. Moony percebeu
minha agitação antes mesmo de mim, eu estava com minha faca na mão e não me
lembrava de tê-la apanhado.
O som de um salto alto batendo no chão e se aproximando era
ouvido naquela rua, a iluminação vacilou. Parada a nossa frente estava uma
mulher magra de vestido vermelho. O vestido era colado em seu corpo, mas ela
não tinha exatamente curvas para
demarcar com aquele vestido.
― Ei magricela, ― eu disse ― você não vai encostar um dedo
na garota!
Ela riu. Gustavo parou ao meu lado, fechando a porta do
carro. Ele estendeu sua mão em direção à mulher, que se contraiu quando a
energia possuiu lhe a mente.
Ele estava dentro da cabeça dela. Estavam em um embate
mental, como eu sabia que ele faria. Era o que eu precisava, mas tive que
esperar pelo sinal. O sinal de que ele não estava completamente lá. Que era
seguro atacar.
“Agora” ouvi sua
voz em minha mente. Ele havia ficado bem mais forte desde o embate com o
dragão.
Adiantei-me até a mulher, ela fez um movimento errado no
tabuleiro quando decidiu ir até nós sozinha. Erro que ela não tornaria a
repetir, por que não teria outra chance.
A faca de prata atravessou-a no peito, atingindo seu
coração. Torci a faca sem tira-la de dentro dela, só para ter certeza de que
ela iria morrer ali.
Gustavo baixou a mão. O corpo dela caiu. E o dele também.
Ele estava exausto, o quanto de poder ela conseguiu com o que havia feito à
garota-fada? Às vezes é melhor não saber desse tipo de coisa.
Abri o porta-malas do carro dele e joguei o corpo morto
dentro. Esperei que ele estivesse melhor para dirigir. Quando estava pronto,
estava amanhecendo. Pelo menos conseguimos concluir o objetivo da noite. Resgatamos
a garota e, de bônus, matamos uma bruxa do Arcano.
V
De volta ao apartamento, eu tinha feito café, a garota havia
recobrado a consciência e estava no banho. Ela precisava limpar o sangue que
havia em seus ferimentos, que aos poucos se curavam. Fadas, se curam tão
rápido.
Estávamos na cozinha, sentados um de frente ao outro, em
silêncio. O único som que era feito era o do chuveiro e dos biscoitos que eu
mastigava, Moony estava refletindo sobre os acontecimentos da noite.
Eu estava para acender um cigarro quando ouvi ela dizer:
― Pode não fazer isso?
Ela estava usando um vestido que comprei em uma loja
qualquer no caminho. Por sorte, coube direito nela.
― O quê? Fumar? ― perguntei
― É, eu não gosto de fumaça... Sou alérgica.
― Grande... ― guardei o cigarro de volta no maço ― Então,
qual o seu nome, tampinha?
― Isadora Echeverria.
― Eu sou Jack Lunewalker e aquele é o Gustavo Martins. ―
indiquei o amigo a minha frente ― Nós tiramos você das garras do Arcano.
― Obrigada... Eu não sei como agradecer.
― Que tal contar o que aconteceu? Já seria de grande ajuda ―
sugeri ―, o cara ali é um grande curioso.
― Bem, eu não sei de tudo. ― ela respondeu, como quem se
desculpa ― mas o que eu sei é que... Eu não tenho mais as minhas asas, nem
mesmo minha ligação com a Mãe.
― Fala da sua alma-feérica? ― perguntei. ― Se for, eu tenho
uma coisa pra você.
Tirei do bolso da jaqueta um pequeno frasco com um conteúdo
enevoado e brilhante, pulsando em cem cores diferentes por vez.
― A escolha é sua ― comentei ― Pode ser uma garota normal e
sem graça, ou uma mestiça com alguns poderes que podem ser bons e também dar
algumas dores de cabeça.
Joguei o frasco para ela. Ela o abriu sem demora. O conteúdo
flutuou no ar e ela o apanhou outra vez. Os ferimentos visíveis se fecharam sem
deixar vestígios, mas os ferimentos de suas costas apenas cicatrizaram.
― É, imaginei que fosse possível. ― Gustavo se pronunciou ―
Sinto muito, não conseguimos recuperar suas asas.
― Tudo bem. Eu fico feliz em estar viva.
― Essa é uma garota positiva! ― comentei, sorrindo.
Silêncio. Ela se sentou ao meu lado.
― Eu posso pedir mais uma coisa?
― Pode.
― É que... Meu pai era um caçador, ao menos é o que minha
mãe diz, e... Eu queria aprender.
― Aprender a caçar? ― perguntei
― É. ― ela respondeu ― Quero fazer pelos outros o que
fizeram por mim... Eu sou assim.
Sorri.
― Bem, o padrinho bem dizia que já estava na hora de eu
encontrar alguém para ensinar o que eu sei.
VI
Deixamos a garota em casa, com meu número de celular. Ela me
ligaria assim que estivesse preparada para a primeira aula de caça. Falei com
sua mãe, ela ― além de bonita ― compreendeu o desejo da filha, nos agradeceu
pelo que fizemos. Ganhamos um pedaço de bolo estranho, mas gostoso do mesmo
jeito.
Gustavo continuava quieto o dia todo.
Sentei-me de volta no sofá, acendendo, finalmente, o cigarro
que queria acender. Traguei-o lentamente, apreciando a nicotina preencher meu
corpo e, com a fumaça fora de meus pulmões, perguntei:
― Qual o lance, cara?
― A bruxa.
― O que tem ela?
― Ela me mostrou o que não consegui ver quando o elo estava
funcionando. ― ele respondeu ― Eu vi sua mente, como ela aparece para você.
― Ah, só isso?
― Não é assustador?
― Não sei, depois de alguns anos eu me acostumei.
― Como você consegue lidar com vozes tão diferentes o tempo
todo falando com você?
― Eu bebo... Me ajuda a manter elas quietas, ou pelo menos
me ajuda a não ouvir aquele lado da mente... O Monstro.
― Bem, você não é um monstro, amigo.
― Eu sei disso, Martins! ― retruquei ― Já passei muitos anos
achando que era, mas eu sei que não sou um monstro. Eu escolhi não ser. E é
isso que me basta.
― Se você diz.
Silêncio.
Batidas na porta. Ela abriu sem que Gustavo tivesse
levantado, era Carlos Frank. Ele sorria, como sempre, e sentou-se conosco:
― Senhores! A diversão voltou a cidade! O que eu perdi nesse
meio tempo?
E toda a nossa aventura foi relatada ao Mago Etéreo.