16 de julho de 2013

Conto — Reunião lunática


I
            Aquilo que mais nos faz sorrir é estar com quem gostamos. Estar com as pessoas que nos fazem bem. Compartilhamos com pessoas os nossos sonhos, nossas alegrias, nossas tristezas, nossos medos... E eu acho que é disso que esta história fala. Ela nos conta como amigos sempre continuam amigos. Como as coisas mudam e ainda permanecem as mesmas.
            A data desta história ainda não passou por nós. Pode ser que também nem chegue desta maneira, as coisas podem acontecer e mudar completamente a minha visão de como a vida seguirá seu rumo. Mas por enquanto, é assim que eu a imagino.

II
            “Amanhã será um bom dia”, foi o que pensei na noite anterior, enquanto corrigia as provas de meio de ano dos meus alunos. Não era possível acreditar como alguns alunos podiam se sair bem enquanto outros se saiam tão mal... Por sorte as férias estavam chegando e eu poderia relaxar e guiar minha atenção em escrever.
            Trabalhar como professor tinha suas recompensas, mas não era assim tão glamoroso quanto se pensa... Certo, ninguém acha bom trabalhar como professor, satisfeito?
            Enfim, o que eu dizia era que o dia seguinte seria bom.
            Naquela manhã de sábado as coisas pareciam tranquilas. Levantei-me da cadeira onde dormir (em cima das provas) e fui até o banheiro. Olhei-me no espelho e tive meu pensamento matinal de fazer a barba, mas a preguiça não me permitiu. Assim como a barba, minhas olheiras estavam cada vez maiores. Escovei os dentes e defequei.
            Coloquei a cafeteira para funcionar enquanto tomava banho. Lavei-me enquanto cantava Ramble On, do Led Zeppelin. Após o banho vesti-me com um jeans antigo e largo, minha camiseta do Ramones — por que não? —, o velho all-star e coloquei uma camisa xadrez cinza.
            Tomei meu café e saí do apartamento, trancando-o e verificando a porta duas vezes para me certificar disso. Adoro minha paranoia. Parei ao lado de minha motocicleta; uma CB antiga e completamente arranhada — eu diria vivida! —; e liguei a música do meu celular, colocando os fones. (Mais Led Zeppelin!).
            Coloquei meus óculos escuros de aro redondo, pus o capacete e montei na motocicleta. Olhei em direção a estrada e parti. O dia estava começando!

III
            Gosto de viajar de motocicleta, mas às vezes penso que seria interessante ter um carro. Poderia carregar mais coisas. Mas meu destino tinha as coisas que seriam necessárias, só o que eu trazia na mochila era meus cigarros, o notebook — caso eu quisesse escrever alguma coisa —, uma muda de roupas simples, a carteira com algum dinheiro e um caderno.
            A cada semestre eu compro um caderno novo, um hábito que criei durante a faculdade, e nele faço anotações sobre tudo que passa pela minha mente. Possíveis diálogos, cenas que nunca saíram do caderno, conversas com personagens — coisa de maluco — e ideias para provas. Meu caderno era completamente multiuso.
            Bem, a viagem foi boa. Essa é a parte boa de morar apenas a algumas cidades de distância do destino. Cheguei lá no começo da tarde. Até mais cedo do que achei que chegaria.
            Há alguns anos, uns amigos e eu criamos a tradição de nos reunirmos e... Bem, não sei exatamente o que fazemos, mas a melhor definição é “curtimos as nossas presenças enquanto rimos das merdas que falamos e discutimos no auge de nossa genialidade besterilística”.
            Enfim, o meu destino era a casa do Gustavo. Ou Moony, como chamo desde que eu me lembro. Fazia algum tempo que não nos víamos e ele decidiu sediar a nossa reunião dessa vez.
            Moony, menino maroto. O primeiro do grupo que acabou casando. Seria engraçado dizer que ele se casou com a garota que ele namorou na faculdade? Talvez. Mais legal que isso é saber que eu quem dei a maior força pra isso acontecer.
            “Ou você sai com ela, ou saio eu!” era o tipo de ameaça que eu fazia para que ele tomasse alguma atitude. Obviamente eu não sairia com uma garota que um irmão estivesse apaixonado por. Sou um bom amigo. Acho.
            Encurtando a história. Moony casou com ela e hoje sou padrinho da pequena filhota deles. Arwen. Ele é realmente fã de Tolkien. Eu também sou, mas não chamaria uma filha assim... Gosto mais de nomes simples.
            Minha afilhada já tem dois anos e meio. E também um amor muito grande pela literatura. Não poderia ser diferente, os pais são escritores e formados em Letras. O padrinho — este que vos fala — é professor de filosofia e também escritor. No mínimo ela amaria literatura ou odiaria. Sorte a nossa que ama. E sorte a dela que ela puxou a aparência da mãe... Embora eu ache que ela vá acabar sendo quase tão alta quanto o pai.
            Marido, pai, escritor, amigo e... É. Ele tem uma boa vida. Sinto orgulho desse garoto, quando o conheci ninguém daria coisa alguma por ele. H-eh, apenas uma pitada de humor negro para alegrar a vida. Mas sério, ele não parecia muita coisa quando nos conhecemos, apenas um cara chato que curtia as mesmas leituras que eu.
            Essa é a vida do Moony.

IV
            Deixei minha motocicleta em frente à garagem dele, impedindo qualquer um de entrar ou sair, simplesmente por que sim, e chamei-o a porta, dando batidas em ritmos musicais.
            Ele me atendeu, obviamente já sabendo que eu era eu. Quem mais bateria na porta dele tocando Highway to hell? Bem, cumprimentamo-nos e entrei. Deixei a mochila no corredor e fomos até os fundos da casa, onde estavam já alguns de nossos amigos.
            Frank e Chuva.
            — Olha quem faltava pra completar o grupo dos emissários do caos! — anunciei-me para eles — Nem me esperaram pra começar a beber, não é, seus maníacos?
            Frank ainda era um gordinho fofo. Por muito tempo chamei-o de “goidinho”. Era um apelido bonito e fazia jus a ele. Mas ele deu uma emagrecida, provavelmente pelo seu excesso de saídas com mulheres. Ou uma única mulher, ele mantinha uma espécie de relacionamento com uma mesma garota há anos.
            Ele havia aberto o próprio escritório de arquitetura e estava vivendo bem. Até tinha projetado a casa do Moony. Ele tentou me persuadir a deixa-lo projetar algo para mim, mas meu multimilionário salário de professor não me permitiria tal coisa. Mesmo que ele fizesse o projeto — o que acredito que acabou fazendo, mas nunca disse — ficaria apenas como um projeto dos sonhos que permaneceria assim... Nos sonhos. E eu gosto do meu pequeno apartamento.
            — Mas você quem disse ontem que não precisávamos esperar! — justificou-se o Chuva. — E além do mais, sabe que eu gosto de beber.
            — Coisa nenhuma. Se gostasse de verdade beberia a cerveja como homem... E não ficaria inventando frescuras para a bebida! — repreendi-o. Ele estava mesmo ainda com um copo de cerveja com algumas coisas dentro que não eram cerveja.
            O nome real do Chuva era Ramon, mas preferimos chama-lo de Chuva. Ele era nosso amigo bizarro. Jornalista e maluco. Cheio de ideias mirabolantes e alguma motivação para seguir em frente com algumas delas. Sempre com óculos escuros pra evitar que as pessoas vissem seus olhos. Estrábico.
            E desde que começou a beber, ele passou a inventar bobagens para criar bebidas estranhas. Como quando ele fez uma cerveja com coentro. Sim, coentro. E raspas de casca de laranja.
            E esse é o tipo de amigo que eu costumo ter. Um aluado entre alguns lunáticos. Faz sentido? Se não fizer, faça de conta que faz e siga sua vida. Por que a minha é divertida com eles.

V
            A tarde seguiu com o ar de risadas e bafo de cevada. Eu precisei me equiparar aos amigos, oras, então bebi mais do que eles. Como sempre. E então, com o inicio da noite, o Moony armou a churrasqueira e tentou acender o fogo. Falhando arduamente.
            — Você tem certeza que é homem, Moony? — perguntei-lhe tirando de sua mão os fósforos. Acendi a churrasqueira rapidamente — Certeza de que foi a sua mulher que ficou grávida e não você?
            — Hoho, muito engraçado — caçoou ele.
            — Definitivamente, você é muito inglês... — comentei
            Frank e Chuva se entreolharam, sorrindo e comentaram baixo “vai começar”.
            — GALÊS! EU SOU GALÊS! QUANTOS ANOS MAIS VAI DEMORAR PRA VOCÊ ENTENDER ISSO?! — gritou Moony para mim.
            — Você me parece bastante inglês — comentei, tomando um gole da minha cerveja e fazendo de conta que o analisava mais de perto.
            — VOCÊ É AMERICANO! CLARO QUE EU TE PAREÇO INGLÊS!
            Silêncio.
            Tomei mais um gole da cerveja; olhei para Frank, Chuva e de volta para o Moony. Começamos a rir todos juntos dessa velha piada. Uma referência a um antigo projeto em que trabalhamos juntos. Quando nossas histórias engataram e começamos a pensar em nossos universos com o devido respeito que eles mereciam.
            — Enfim, onde estão suas senhoras? — perguntei para Moony e Frank.
            — Estão vindo. — respondeu Moony — Foram por o papo em dia... Acho.
            — Dez reais de que estão se pegando — comentei baixo com o Chuva que riu
            — Eu caso! — comentou Frank rindo — Com a minha garota é bem possível.
            — Hey! É da minha mulher que estão falando! — indignou-se nosso inglês/galês
            — Bem, então é certeza. Do jeito que o Moony é... — comentei — Eu acho até que vou aumentar a aposta.
            A porta as minhas costas se abriu e uma voz feminina perguntou:
            — Que aposta é essa, Luigi?
            Virei-me lentamente para encarar minha comadre e sorri da maneira mais cara-de-pau possível:
            — Nenhuma, pequena, nenhuma. — respondi colocando a mão atrás da cabeça
            — Sei... Eu te conheço, rapaz.
            A cena teria sido bem mais pesada se não houvesse acontecido um pequeno furacão que passou correndo pelas pernas da Adriana e pulando em mim berrando “tio Luigi!”.
            Apanhei minha afilhada no colo e ergui-a no ar, para o terror dos pais dela que já gritaram para que eu a abaixasse. Esses pais de hoje em dia são uma chatice, não deixam que a criança faça coisa alguma. Se não fosse pelo padrinho malandro, ela provavelmente nunca teria sabido o que é altura até TER altura.
            — Trouxe presente pra mim? — ela perguntou fazendo carinha de anjo
            — Carinha de anjo não funciona comigo e você sabe disso, tampinha. — respondi — Mas não, dessa vez não te trouxe nada. Quase nem me trouxe.
            — Ah é? Por que, cara? — perguntou Frank — A escola está te dando muito trabalho?
            — É... Sabe, eu não sei como alguns desses moleques consegue chegar ao ensino médio. Tenho visto coisas escabrosas na língua portuguesa. Deixaria esses dois — indiquei o casal anfitrião — de cabelos brancos... Digo, mais ainda. — Moony já começava a manifestar os fios prateados no topo da cabeça.
            — Yeay. E você nem pode ralhar muito, sabe como é professor de filosofia.
            — O ensino caiu muito desde a nossa época. Nem posso mais deixa-los pensar direito. É preciso que eles pensem da maneira que querem que pensem... Por isso essa geração está fodida.
            — Luigi! Olha o palavreado perto da Arwen! — ralhou Adriana — Vem filha, vamos lá pra dentro, a tia está esperando — ela falava da namorada do Frank.
            Uma baixinha levou a outra para dentro. Eu ainda não descobri qual delas foi que levou a outra. E nós ficamos lá fora, esperando a carne assar. Obviamente, o Moony também ralhou comigo pela palavra dita, mas concordou com o fato de o ensino estar decaindo em certos pontos.
VI
            A noite chegou e, enfim, a comida estava pronta. Chuva e eu já havíamos descoberto que o Moony tinha um vinho escondido em um dos armários da cozinha e bebíamos escondidos. Ele provavelmente nos mataria se descobrisse.     Frank estava se agarrando com a namorada a um canto. E Moony conversava com a esposa, enquanto ninavam a pequena Arwen.
            Quando ela dormiu, eles nos chamaram para comer. O que foi uma pena, o vinho estava bom e Moony tomou-o de nossas mãos... Bem, me restou aguardar para procurar mais tarde.
            A mesa estava posta e nós nos sentamos. Confesso que senti um leve pesar por ver os dois casais ali, mas ao menos o Chuva também não havia levado ninguém... Se ele tivesse levado, eu estaria mal na história do grupo. Perder pro Chuva é feio.
            E a Adriana fez questão de me alfinetar com esse fato:
            — E então, Luigi, algum dia você vai chegar aqui com alguma namorada? E que estejam juntos há mais do que algumas semanas...
            — Se eu tiver sorte, não. — respondi enquanto me servia de um pouco de farofa. Males de um nortista. — Sabe que eu sou um espírito livre.
            — Nem me fale, eu me arrependo de ter tentado lhe apresentar a alguma amiga minha. — comentou ela
            — Sério, é você quem veste as calças nessa casa, não é? — comentei alfinetando o Moony — Moony, qual é, essa mulher ainda quer ficar me dizendo que tenho que me juntar com alguém...
            — Amor, ele tem razão. — defendeu-me ele — Você sabe que ele é imaturo demais pra um relacionamento sério.
            — É! — concordei e por alguns instantes fiquei em silêncio, até perceber o que ele havia dito — HEY! O que quer dizer com isso?!
            Todos riram. O Frank até se engasgou com a bebida.
            — C’mon. Você sabe que não conseguiria. — comentou Moony.
            Todos concordaram.
            — Vocês têm razão. — concordei sorrindo e voltei a comer — Mas e você, Chuva? Ainda persegue garotas pela internet?
            — Eu nunca persegui ninguém — respondeu
            — E a Mayara? — lembrei-o — Até onde eu me lembro você ficava sofrendo com seus chifres ilusórios e seguia-a em todo tipo de rede social, mesmo não tendo chance de ficarem juntos. Qualquer um sabia.
            — Qual é! Eu tinha dezessete anos!
            — Eu também já tive dezessete anos e nunca persegui ninguém.
            Chuva jogou-me uma azeitona e eu revidei arremessando outra.
            Os quatro amigos estavam juntos; e também haviam duas garotas na mesa. Passamos a relembrar os tempos em que éramos um bando de moleques que tinham sonhos e esperanças. Comparamos nosso presente com o que achávamos que seria.
            — E eu sempre achei que eu acabaria sendo o cara que ia encaretar, casar e ter filhos. Eu era tão contrário a isso que achei que ia acabar acontecendo. Sorte que eu sempre posso contar com o Moony para me tirar desse fardo.
            — Disponha. — ele riu e beijou a esposa.
            — Que meigo. — comentei — Ei, que tal aquele vinho? Já está aberto mesmo...
            Chuva concordou comigo e o Frank incentivou:
            — Vamos, Moon. Você comentou que estava guardando para um momento especial, quer momento mais especial do que quando reunimos a velha turma?
            — Okay... — ele se levantou e foi buscar o vinho. Ato que eu comemorei batendo na palma da mão estendida de Frank em um high-Five.

VII
            Nossa reunião se estendeu até o começo da madrugada, regada pelo restante do vinho que conquistamos da adega do Moony, pela cerveja que comprei para completar o estoque — que já estava baixo quando cheguei — e também por risadas e insultos comuns vindas das conversas que tivemos. Coisa de amigos que não se veem com a frequência que antigamente se viam.
            Frank levou a namorada para casa dela... E provavelmente ficou por lá.
            Chuva foi para a própria casa, disse algo sobre estar bebendo demais e ter que concluir um artigo para o jornal. Alguma coisa de ser editor e como era difícil escrever coisas que não o interessavam. Concordo plenamente com ele.
            Adriana já havia se deitado e Moon estava dentro de casa fazendo alguma coisa.
            Eu estava sentado no quintal, observando o luar e pensando no que a vida havia nos reservado. Pensando se as pessoas que éramos teriam orgulho de quem somos.
            Acendi um cigarro e suspirei. Eu provavelmente havia batido minhas expectativas.
            — Entristecido com algo?
            Moony sentou-se do meu lado e também encarava o luar. Ficamos alguns instantes em silêncio e então respondi:
            — Mais ou menos. — dei uma longa tragada em meu cigarro e continuei — estou sendo apenas um pouco nostálgico. Sabe, curtindo um pouco de auto piedade.
            — Martirizando-se por ser professor? C’mon, até eu fui professor! — comentou ele
            — É, mas já não é mais. Eu ainda sou.
            — E acha isso ruim?
            — Não... — respondi — Estou apenas vendo como a vida foi bem vista. Sabe, Frank namorando, o Chuva conseguiu ser editor do jornal, você constituiu família. Até tem uma filha!
            — E...? — ele perguntou, já sabendo onde eu queria chegar — Sabe, você só precisa deixar as coisas rolarem. Falta um pouco de risco no que faz.
            — Esse conselho é meu. Não o use sem permissão — comentei sorrindo.
            — Mas é verdade cara, você tem se enfiado em um relacionamento furado atrás do outro desde que nos conhecemos. Nunca se deixou arriscar de verdade com uma garota. Com quantas você chegou a sair por mais de dois meses?
            Levei o cigarro à boca enquanto pensava. Ele tinha razão.
            — Nenhuma.
            — E isso por?
            — Acho que tem razão quando diz que eu ainda sou imaturo pra um relacionamento sério com alguém. Por enquanto prefiro continuar a vida.
            — E o que isso significa?
            — Sinceramente, não tenho a menor ideia — respondi jogando a bituca do cigarro por cima do muro — Talvez continuar as coisas, seguir com as aulas, rindo com os amigos, cuidando da afilhada e escrever mais firmemente. Publicar alguma coisa esse ano ainda.
            — Gosto de ouvir isso.
            — Eu também... Eu também...
            — Bem, o sofá está arrumado lá pra você. Boa noite.

VIII
            E então é isso.
            A vida segue dessa maneira, ou não. As coisas podem acontecer desse jeito no futuro. As coisas podem ser completamente diferentes também, mas eu tenho certeza de que meus amigos e eu continuaremos amigos. Até o momento em que o universo disser “chega! Não posso permitir que um grupo assim me derrote!”, aí teremos que lutar contra tudo para preservar essa amizade.
            Por que por eles eu mataria. Os males do mundo não seriam suficientes para me impedir de continuar amigo desses lunáticos.

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